sábado, 29 de novembro de 2008

1983: João Maria e as cheias de Porto União

Rio Iguaçu visto das grutas usadas por João Maria no morro da Cruz (Porto União-SC)

Quando esteve na cidade em 1896, São João Maria plantou uma cruz no alto de um morro. Previu que se um dia ela caísse, o rio Iguaçu subiria de nível e inundaria a cidade. Dias antes das enchentes de julho de 1983, a cruz tombou de lado, sem chegar a cair. Foi o suficiente para que a população realizasse procissões até o morro da Cruz, mas isso não bastou: a chuva engrossou e as águas cobriram a cidade. Só ficaria de fora, segundo a profecia, a residência do coronel Amazonas Marcondes. Era um homem bom e quedaria a salvo. E foi o que aconteceu. A casa ainda existe. Confira abaixo as fotos que fiz da enchente de 1983, quase todas a bordo de um helicóptero da Aeronáutica que atendia os flagelados. E outras imagens. Há também o relato de Cleto da Silva sobre a presença de João Maria em Porto União/União da Vitória - a cidade era uma só, mas foi dividida após o fim da guerra do Contestado.


Porto União, 1896

“[...] passa por União da Vitória o mui falado profeta João Maria1,’São João Maria’, como costumam os sertanejos dizer.

É um ancião de estatura regular, alourado, tendo o sotaque de espanhol.

João Maria diz andar cumprindo uma promessa, pelo que peregrinava há muito tempo, porém que brevemente te-la-á terminado.

Aconselha aos sertanejos que plantem bastante. Não gosta de ser acompanhado por grupos.

Carrega a tiracolo um saco de algodão e, dentro dele, uma barraca pequena e uma panelinha.

Traz consigo um crucifixo e outras pequenas imagens de santos.

Costuma pousar à beira dos caminhos, procurando local de boa água.

Depois que o profeta deixa o pouso, os moradores da vizinhança fazem um cercadinho ao redor da fonte, que se torna dali em diante, para eles milagrosa, pois piamente acreditam ser João Maria um santo.
O profeta não aceita dinheiro: contenta-se quando lhe oferecem alguma verdura, um pedaço de queijo ou um pouco de leite.

Pouco se demora nas comunidades.

Aconselha a que tenha o povo bastante crença em Deus e que trabalhe para desviar as más tentações.

João Maria, pacífico monge, tão popular nos sertões do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e Goiás, aconselhou aos moradores de União da Vitória, a que plantassem uma cruz no morro mais alto da cidade, que é o chamado ‘Morro da Cruz’2.

Efetivamente essa cruz (uma grande cruz de madeira) ali colocada há muitos anos; depois outra foi substituída e ainda uma outra de cimento foi naquele morro plantada pela família Savi.

De quando em quando, os devotos galgam o cume do Morro e ali rezam, fazem suas promessas e acendem velas.

Ficou esse profeta consagrado pelos antigos habitantes de União da Vitória, por cuja localidade passou ele várias vezes; mesmo entre pessoas cultas tem o profeta grande veneração.

Lendas se fizeram em torno da personalidade do ‘seu’ João Maria, as mais interessantes e todas cheias de misticismo religioso.

Há quem narre as muitas profecias feitas pelo velho peregrino, algumas das quais, dizem, se realizaram.

Damos o retrato do benquisto monge que, nos garantiram pessoas que o conheceram, ser verdadeiro.


1 Não confundir o profeta João Maria com o célebre ‘monge’ José Maria, do Irani.
2 O morro da Cruz tem a altitude de 943 metros sobre o nível do mar".



Residência do coronel Amazonas Marcondes. Segundo a tradição oral, João Maria garantiu que ela seria poupada da enchente. Em 1983 ela não foi atingida pelas águas, uma das poucas a escapar.

Aspectos das grutas usadas por João Maria na sua passagem por Porto União em 1896.

Escultura de Itacir Bortoloso no Parque Monge João Maria (Porto União-SC). Embaixo um pouco do ambiente onde fica a imagem.




FOTOS DA ENCHENTE DE 1983 EM PORTO UNIÃO



















Marco em forma de "x" para permitir pouso com ajuda







Repórter Ilse Moreira entrevista os tripulantes do helicóptero da Aeronáutica.


sexta-feira, 28 de novembro de 2008

José Fabrício das Neves (17)

Lagoa do Irani (SC). Registro em 23 de agosto de 2008.


Com quanta aleivosia
se faz um José Maria



Dois autores com ampla convivência entre os caboclos da região do Contestado ouviram, anotaram e publicaram depoimentos de dezenas de pessoas ao longo de décadas, como é o caso do topógrafo Euclides Felippe. Pedro Felisbino também. Nascido em Santo Amaro da Imperatriz, no litoral catarinense, desde jovem convive com os moradores de Taquaruçu e, ultimamente, está se graduando em História pela UnC. Os dois provam ser possível um relato com base nas memórias desses caboclos, o que nos leva a um questionamento profundo do que tem sido escrito sobre o tema. No caso específico, vamos acompanhar depoimentos que dão outro rosto a José Maria de Castro Agostinho, o monge José Maria.



PEDRO FELISBINO

As virgens

Pedro Felisbino conheceu três virgens: Isabel, Sinhana e Cecília.

Dona Isabel era sogra de seu tio Pedro Lorenzi. “Conseguiu fugir do massacre do Taquaruçu, com sua mãe, que era esposa de Praxedes”. Depois da guerra constituiu família e morreu devido a idade avançada. Está sepultada no cemitério de Taquaruçu e Cima.

Sinhana já era casada e tinha quatro filhos quando ajudava José Maria. Seu marido, conhecido por Cabeça, foi morto por Benedito Chato. Depois da guerra se casou com Marcos Tomaz e ficou conhecida como Ana do Marcos.

Cecília era mãe de um vizinho de Felisbino. Sobreviveu ao bombardeio de Taquaruçu. Casou-se e teve muitos filhos.

As seis virgens que ajudavam José Maria “concentravam-se e posicionavam as mãos sobre os pacientes transmitindo energias unidas a José Maria, que tinha grande poder de cura, e por mais grave que fosse a doença, ali no momento, todos se encontravam com aspecto de curados”.

Se José Maria tivesse “abusado” de algumas das virgens, não teria saído de Taquaruçu para morrer no Irani: os pais das moças “o matariam” antes. (p. 37)


Relato de Alcides Webber a Pedro Felisbino


“[...] Houve um boato que em Campos Novos tinha um remedieiro que acertava muito bem a quem lhe procurava. Meu pai, Carlos Webber, foi a Campos Novos na busca de remédio para minha mãe que estava acamada e foram muito bem atendidos pelo remedieiro que se chamava José Maria. Os remédios foram eficazes e com isto mais e mais gente ia a Campos Novos em busca de remédio para seus males, até que José Maria resolveu vir ao Taquaruçu para evitar que tanta gente tivesse que se deslocar até lá.

José Maria marcou uma data para vir atender no Taquaruçu e neste dia reuniu-se muita gente, e José Maria não veio, mas mandou um mensageiro justificando e quando tivesse uma oportunidade viria. Na véspera da festa do padroeiro Bom Jesus, em agosto de 1912, chegou o tão esperado José Maria, uma pessoa falante, sorridente, de bons modos, humilde, tratava muito bem as pessoas e no dia da festa liderou as rezas e os cantos, parecia até ser um dos líderes do lugar.

As festas do Taquaruçu eram bem vistas por muitos visitantes das comunidades vizinhas e até de longe e estas pessoas ao voltarem a suas casas, levavam a boa notícia, que José Maria atendia as pessoas no Taquaruçu, pois na época não havia mendigos na região, e elas apegavam-se a benzimentos e remédios caseiros, extraídos da própria natureza. José Maria, tendo larga experiência em ervas medicinais e não cobrando nada pelos remédios a quem lhe procurava, não dava conta de atender tanta gente, eles tinham que esperar por vários dias e a tal ponto que precisou arrumar umas moças para por seu trabalho em ordem, que ficaram conhecidas por virgens.

E isso não agradava a Albuquerque [superintendente de Curitibanos]. Ele não via com bons olhos o aumento da população em Taquaruçu porque isso fortalecia seu adversário, precisava arrumar uma maneira de fazer com que José Maria fosse embora. Mandou que se retirasse imediatamente e José Maria, temendo que Albuquerque enviasse seus capangas disfarçados de clientes e armasse uma emboscada, organizou os Pares de França para sua segurança”.


Referência
FELISBINO, Pedro; FELISBINO, Eliane. Voz de Caboclo. Florianópolis: Ioesc, 2002.


Túmulo de José Maria no Irani (23 de agosto de 2008)

Historiador Felipe Corte Real de Camargo conhece o túmulo.

Marco Nascimento faz registros do local onde José Maria foi sepultado.


EUCLIDES FELIPPE


“Só dava bons conselhos”
O autor ouviu Petronilo Ferreira de Almeida, dono da Fazenda da Forquilha (Curitibanos), que conheceu o personagem. Disse que José Maria não se intitulava monge. “Nunca o ouviu dizer que era irmão de João Maria; mas era um bom curandeiro, isso sim”.

“Também não era nenhum sedutor, nem explorador, nem homem de maus conselhos; pelo contrário, só dava bons conselhos, respeitava as famílias. Quando seu pai quis dar-lhe um saquitel com moedas de ouro, agradeceu, assim como recusou também uma invernadinha de 30 alqueires”.

[Petronilo: filho do coronel Francisco de Almeida em Campos Novos, adversário político do coronel Albuquerque. Foi ele quem recebeu José Maria em Campos Novos em 1912, vindo do Irani. Nessa ocasião, ele curou a esposa do coronel, mãe de Petronilo].

Enquanto esteve na fazenda de seu pai José Maria não “temperava” remédios, apenas os receitava de ervas. “Não cobrava nada e nada aceitava em troca pelas receitas; pois, por onde andava todos lhe davam comida e vendo que suas roupas poíam, não faltava quem lh’as dessem novas”.

“Se José Maria fosse só a metade do que inventaram dele após sua morte, teria há muito sido espantado do lugar”. (p. 73)


O nome
Não existem provas de que o “verdadeiro nome” de José Maria tenha sido Miguel Lucena de Boaventura. “O que mais parece é ter este sido um cognome intencionalmente composto”, diz, para imputar-lhe “uma reputação delinqüente, ligando-o ao de dois meliantes de Campo Belo e de Palmas”, nem que tenha sido desertor do Exército ou da Polícia Militar do Paraná. (p. 73)

[Rosa Filho foi atrás de documentos na Polícia Militar e não encontrou nenhuma referência de que José Maria tenha sido desertor daquela força – ROSA FILHO, João Alves. Combate do Irani. Curitiba: Associação da Vila Militar, 1998]

“Sabe-se apenas que antes de chegar em Campos Novos em 1912, viveu talvez por algum tempo em Irani e depois perambulava pelo vale do rio do Peixe receitando chás de ervas, ao ter sido solicitado pelo coronel Francisco de Almeida, para medicar sua esposa enferma”. (p. 74)


“Nosso irmão”
Trechos de uma entrevista feita por Euclides Felippe com Joaquim Rosa, fazendeiro em Taquaruçu que conheceu José Maria.


“Eu conheci ele aqui. Contavam que do Irani vinha para Rio do Peixe com fama de curador. Dali é que o coronel Chiquinho de Almeida o mandou buscar para curar a mulher que não andava boa”. Com a cura da mulher, a fama correu. “Como ele parasse na fazenda, tinha dias que o coronel chegava hospedar mais de dez pessoas”, alimentando e abrigando homens e mulheres e seus animais.

Comentam que o coronel mandava carnear duas rezes por semana.

O ajuntamento cresceu. José Maria se transferiu para a casa de um capataz em outra invernada do coronel no Espinilho.


“– Ele declarava ser irmão de João Maria?
– Ouvi ele falar em ‘nosso irmão’; mas não em ‘meu irmão’. O resto é por conta do povo [...]”. (p. 75)






As fotos
Fellipe reuniu as três imagens que dizem ser de José Maria e as mostrou a antigos moradores da região de Taquaruçu. Nenhum deles reconheceu nelas o verdadeiro personagem. Com base numa dessas fotos o historiador catarinense Aujor Luz viu nele “estigmas físicos de degeneração”. (p. 85)





Referência
FELLIPE, Euclides. O último jagunço. Curitibanos-SC: UnC Curitibanos, 1995.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Uma resenha de Anéas Athanázio

O combate do Irani (*)

Enéas Athanázio

Muitos aspectos da chamada Guerra do Contestado (1912/1916) ainda são desconhecidos ou obscuros. Embora a bibliografia sobre o tema venha crescendo sem cessar, revelando o interesse que desperta, muitos fatos e personagens ainda precisam ser pesquisados, respondendo, inclusive, a algumas perguntas básicas até hoje sem resposta convincente. Creio que o tabu em que foi transformada a Guerra na região durante tantos anos contribuiu para dificultar as pesquisas em face do desaparecimento de muitas fontes. Havia um certo pudor de tocar no assunto, como se fosse algo vergonhoso ou feio, tanto que nos colégios onde estudei sempre reinou completo silêncio a respeito. Mas hoje, graças ao esforço de dedicados pesquisadores, a situação começa a mudar e o panorama completo daqueles acontecimentos vai se formando, permitindo uma visão confiável do que de fato aconteceu e seus verdadeiros motivos.

Entre os personagens pouco conhecidos está José Fabrício das Neves (1880/85(?)-1925), que teve participação ativa no chamado Combate do Irani, em 22 de outubro de 1912, e depois se entregou a outras atividades, sempre na região, e, no entanto, é quase ignorado pela historiografia catarinense. Graças a um livro recente, de autoria de Celso Martins, essa figura reaparece e tem sua existência descrita com base em fontes confiáveis, recuperando um espaço de que fora alijado pelo esquecimento. Trata-se de “O mato do tigre e o campo do gato – José Fabrício das Neves e o combate do Irani”, publicado pela Editora Insular (Florianópolis, 2007), em que o autor, depois de muita pesquisa bibliográfica, entrevistas, andanças em diversos lugares e inumeráveis indagações, conseguiu rastrear com segurança os passos desse controvertido “coronel”, homem dos mais conhecidos, temido por uns e admirado por outros, ora elevado à condição de herói, ora alcunhado de sanguinário bandido. Ao final, bem pesados os fatos e as circunstâncias, ressalta a influência que exerceu e as conseqüências graves de sua ausência, vítima de traiçoeira emboscada, em 1925.

Parece fora de dúvida que Fabrício participou do célebre Combate do Irani, nas cercanias do Banhado Grande, onde aconteceu o entrevero das tropas legais com os caboclos, falecendo na ocasião o coronel João Gualberto e o “monge” José Maria, líderes de ambas as facções. Segundo alguns, a participação de Fabrício teria sido decisiva na morte do comandante militar, acusação que o perseguiu pela vida toda e teve graves conseqüências. Pelo sim pelo não, o fato é que a partir dali ele não exerceu atividades guerreiras, limitando-se a cuidar de seus negócios e defender os posseiros espoliados pelas colonizadoras, além de se manter em permanente vigilância para continuar vivo. Após seu desaparecimento precoce, aos 40 ou 45 anos, ficaram os posseiros sem proteção e teve início sua dispersão, forçados a abandonar as terras que ocupavam de forma pacífica há muitos anos, às vezes por gerações. Foi uma diáspora nem sempre registrada pela história regional. No fundo, conclui o autor, a Guerra do Contestado e as constantes ondas de violência tiveram como motivo a questão fundiária, o uso da terra. E Fabrício, - segundo disse alguém-, foi enterrado como bandido e ressuscitou como herói graças a esse livro.

(*) Artigo publicado no jornal Página 3 (Balneário Camboriú) de 23.2.2008, pg. 45. Republicação autorizada pelo autor.


Perfil

Enéas Athanázio é ficcionista, crítico e biógrafo com extensa bibliografia. Reside em Camboriú, SC. Nasceu em Campos Novos (SC). Começou a escrever ainda nos tempos acadêmicos, mas seu primeiro livro só foi lançado em 1973 – O Peão Negro, coletânea de contos. Desde então deu a público outros 37 livros e 13 opúsculos, totalizando 51 obras individuais em volumes nos gêneros novela, conto, crônica, ensaio, reportagem, crítica e jurídico. Participou até agora em 125 antologias organizadas em vários Estados e algumas no Exterior. Como ficcionista, foi enquadrado pela crítica entre os regionalistas dos Campos Gerais, na trilha de Tito Carvalho e Guido Wilmar Sassi, embora sem sofrer influência deles. Seus trabalhos são publicados com freqüência em antologias, revistas, suplementos e jornais de vários pontos do País.
(Fonte: http://contosbrasileiros.blogspot.com/2007/09/enas-athanzio.html)


Confira um pouco do trabalho de Enéas Athanázio
http://www.jornaldepoesia.jor.br/eneasathanazio.html

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Jornadas com Marco Nascimento

Pinhão (PR)


Nas andanças pelo Meio-Oeste catarinense e o Sudoeste do Paraná e imediações, tive duas parcerias fundamentais - minha companheira Margaret Grando, desde o início da jornada em março de 2007, e na segunda etapa, o repórter-cinematográfico Marco Nascimento (*). Com ele foi possível gravar cerca de 40 horas de cenas e entrevistas para um documentário em preparação.

Coronel Vivida (PR)


Coronel Domingos Soares (PR)


Filmando vó Bástia Perão. Coronel Vivida (PR)

Com Juca Perão. Coronel Vivida (PR)


Palmas (PR)

Paulista do Bexiga experimenta o paladar da erva-mate


(*) Marco Antonio Nascimento, nascido em São Paulo-SP, em 19/08/1949, filho do fotógrafo Firmino Nascimento e da Olga Nollé Nascimento. Iniciou na fotografia aos 14 anos de idade, atuando nos ramos de laboratório e estúdio na capital paulista até 1976. Em Londres desde 1976, atuou como fotógrafo free-lance. Foi repórter-cinematográfico da Globo Internacional em Londres (1982-1997) e da BBC, CNN, RAI, SIC e Tele Montecarlo até 2000, também na Inglaterra. Cobriu os conflitos nos Bálcãs, a queda do Muro do Berlim, o fim da União Soviética, a invasão de 1982 do Líbano por Israel e os conflitos com os palestinos, entre outros. Reside em Florianópolis-SC desde 2001.