sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

José Fabrício das Neves (41)

Irani-SC, 9.11.2007.


Usufruindo o adverso

José Fabrício é de um tempo em que a “coragem pessoal, a destreza e a habilidade nas lides do gado”, assim como o “cultivo generalizado dos valores ligados à violência”, favorecem o “senso de independência e necessidades criadas por um sistema social e econômico que implicava num gênero de vida incompatível com uma subordinação disciplinada”, conforme Duglas Monteiro (1972, p. 26). Isso está ligado, prossegue o autor, ao “reconhecimento de subordinadores e de subordinados como pessoas integrais, favorecendo um relacionamento difuso e não, específico entre agentes sociais colocados em posições hierarquicamente superpostas”.

Vivia numa época onde a ausência do Estado fazia com que certos homens assumissem a responsabilidade pela manutenção da ordem, como foi o caso de José Fabrício, conforme alguns detalhes já observados. Além de estar com a cabeça a prêmio, o personagem começa a sentir os efeitos das mudanças que se operam em todo o seu universo, mas consegue apreender os sinais dessas mudanças e se organiza para adotá-los. Entre eles, a chegada do Estado, tendo em vista a conceituação que autores como Sérgio Adorno (2002), utiliza em seus trabalhos. “O Estado moderno constitui-se como centro que detém o monopólio quer da soberania jurídico-política quer da violência física legítima”, destaca, processo que resultou na “progressiva extinção dos diversos núcleos beligerantes que caracterizaram a fragmentação do poder na idade média”.

Trabalhando um conceito desenvolvido por Max Webber, Adorno considera que o estado envolve, pelo menos, três componentes essenciais: monopólio legítimo da violência, dominação e território. "O estado moderno é justamente a comunidade política que expropria dos particulares o direito de recorrer à violência como forma de resolução de seus conflitos", explica. "Na sociedade moderna, não há [...] qualquer outro grupo particular ou comunidade humana com ‘direito’ ao recurso à violência como forma de resolução de conflitos nas relações interpessoais ou intersubjetivas, ou ainda nas relações entre os cidadãos e o estado" (ADORNO, 2002, p. 8).

Mas existem limites a essa violência, condição para que adquira legitimidade. “A violência legítima é justamente aquela cujos fins – assegurar a soberania de um Estado-Nação ou a unidade ameaçada de uma sociedade – obedece aos ditames legais”, ou seja, o “fundamento da legitimidade da violência” repousa “na lei e em estatutos legais”, segundo Adorno (2002, p. 8). Simon Schwartzman, que também estuda o assunto, assinala que “um dos propósitos dos Estados modernos tem sido o de abolir o uso privado da violência e garantir seu monopólio para a autoridade pública” (SCHWARTZMAN, 1980).

Por outro lado o “impacto da penetração de recursos vultosos, quanto a pessoal ocupado e capitais investidos e inovadores quanto a tecnologia empregada e as soluções organizatórias”, salienta Monteiro (1972, p. 28), alterou “de modo substancial o gênero de vida costumeiro” na região. Élio Serpa (1999, p. 18), enfatiza que naquele momento de consolidação do regime republicano, “as elites brasileiras queriam modernizar o Brasil e as pessoas”, o que significava a “introdução de mão-de-obra livre e, para isso, estimulavam a vinda de imigrantes alemães e italianos”. Significava “construir estrada de ferro, implantar iluminação pública para as cidades, serviços de telefonia”, entre outras iniciativas. As pessoas deviam “sentar-se à mesa, comer de garfo e faca, saber falar corretamente a língua portuguesa, divertir-se como homens e mulheres faziam nas cidades – em clubes, dançando valsas e outras danças”, salienta o mesmo autor. “E seguir normas higiênicas determinadas pelos médicos”.


Descendente de José Fabrício, o músico Vicente Telles, neto do coronel Alexandre Telles da Rocha, primeiro intendente de Irani na década de 1920 e fazendeiro na região, lembra o episódio envolvendo o antepassado e Miguel Fabrício das Neves, que pode não ter ocorrido exatamente como ele conta, mas revela a existência de um conflito familiar que, se permanece na memória, certamente teve um forte impacto. Miguel, então com longas barbas e tio de José Fabrício, teria aconselhado o sobrinho a parar com as correrias, sossegar um pouco. Os tempos estavam mudando e certas atitudes passavam a ser condenadas. O caudilho ouviu os conselhos, sempre calado, até reagir - “segurou o Miguel, tirou a barba, deu um banho numa bica de monjolo e o soltou”, lembra Telles (2007). O episódio pode ter dado origem a uma divergência interna na família Fabrício das Neves, contribuindo para denegrir a imagem de José Fabrício, conforme referido anteriormente.


A chegada dos novos tempos, entretanto, não foram suficientes para arrefecer o ânimo e a disposição de José Fabrício. Quando chegar a hora, ele vai negociar com as empresas colonizadoras; estabelecer relações amistosas com as primeiras autoridades do novo município de Cruzeiro; utilizar na medida do possível o aparato estatal; e participar do processo político-partidário. Em outras palavras, ele usa os tentáculos do Estado com habilidade e a seu favor, assumindo as características de um “coronel”, cujo conceito vamos discutir no capítulo seguinte.

Com a assinatura do “Acordo” entre o Paraná e Santa Catarina em relação às terras contestadas, e a passagem de todo o lado oeste do rio do Peixe para a jurisdição catarinense, Fabrício se sentiu um pouco mais aliviado, embora a presença dos tentáculos do aparelho de Estado se tornem mais presentes. Estava aliviado por seus “domínios” passarem a pertencer a Santa Catarina e “não tardou que o coronel percebesse que os serviços de colonização seriam inevitáveis e necessários”, observa Antenor Geraldo Zanetti Ferreira. “Ele mesmo já se dizia cansado de lutas e queria viver sossegado com sua mulher”, assinala, “em algum lugar da região do rio Engano”, onde queria “morrer comendo carne de anta”, como “costumava dizer” em tom de brincadeira (FERREIRA, 1992, p. 62-63).

É preciso ter em mente que após o “Acordo” de 1916, o então governador Felippe Schmidt assinou a lei nº 1.147, de 25 de agosto do mesmo ano, dividindo a região incorporada em quatro municípios: Mafra, Porto União, Chapecó e Cruzeiro, prevendo a implantação de sedes com a categoria de vila (BELLANI, 1989). Assim, as regiões dos atuais municípios de Concórdia e Iraní, entre outros, ficam subordinados ao novo município de Cruzeiro, cuja sede inicial foi em Limeira (atual Joaçaba), nas margens da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Através da resolução nº 934 do Governo do Estado, foram nomeadas as primeiras autoridades (QUEIROZ, 1967, p. 8).

No dia 11 de outubro (1917) foi nomeado o primeiro juiz de direito da Comarca, Aprígio Gomes de Melo Cavalcanti, e no dia 18 do mesmo mês o promotor público Claribalte Galvão. Em 20 de agosto de 1919 foi fixada a sede definitiva de Cruzeiro, transferida de Limeira (Joaçaba) para Catanduva (singular), com o nome de Cruzeiro, situação que durou até março de 1926, quando a lei estadual nº 1948 (8 de março) elevou o povoado de Limeira para vila, voltando a sediar o município atual de Joaçaba (QUEIROZ, 1967, p. 8-9).

No caso das primeiras autoridades nas regiões dos atuais municípios de Concórdia, Irani e outros, elas precisam ter o aval do coronel, pois em caso contrário ficariam impedidas de exercer seus papéis. “Ele botava esses comissário, inspetor de quarteirão, e dava as ordens: crime bárbaro não tem cadeia, vocês pegando pode matar”, observa José Gomes. “Foi onde mataram dois caras que mataram um rapazinho nos gramados de Irani”. De acordo com ele, Fabrício mantinha sim relações com algumas autoridades, “alguma coisa ele tinha, porque eles ordenavam” e Fabrício em “grande parte ele fazia por conta dele mesmo”. Caso fosse “executar pelas ordens que recebia do governo, muitos eles não podia matar, e tinha gente que perseguia ele, então ele pegava e matava mesmo”, acrescenta Gomes, que passou quase toda a vida na região de Concórdia-SC e hoje reside em Colombo-PR, nas proximidades de Curitiba.


O período que se inicia nos interessa de perto, tendo em vista o paulatino envolvimento de José Fabrício das Neves com a política local, embora as referências sejam escassas, mas que apontam para uma aproximação do caudilho com as autoridades e o progressivo envolvimento no quadro que se cria. No plano estadual, o Partido Republicano Catarinense (PRC), único existente, exercia o domínio do Executivo estadual desde 1891, com duas grandes lideranças: Lauro Müller e Hercílio Luz. Segundo Carlos Humberto Corrêa (1984, p. 18), o PRC era, “na verdade, aqueles dois nomes; e os mesmos, por sua vez, juntos, ou separadamente, eram o Partido”.

Assim, desde o surgimento da República, a cena político-partidária não se caracterizou “pela luta pelo poder entre os dois líderes estaduais”, pois enquanto Müller atuava mais no plano federal, Hercílio cuidava das questões regionais. “Afora as divergências de Hercílio com Felipe Schmidt, no primeiro governo deste, e com Gustavo Richard, o processo político catarinense foi de um continuísmo oligárquico”, salienta Corrêa (1984, p. 25-26), onde “as preocupações maiores estavam em deixar no poder os membros de um Partido único, unidos entre si por laços consangüíneos”.

Na região do planalto, incluindo a região recém incorporada com o "Acordo", a cidade de Lages “tinha o título de ‘capital política’ de Santa Catarina, pela tradição de seus representantes e laços efetivos com o Rio Grande do Sul”, segundo Carlos Humberto Corrêa (1984, p. 27). Desde a proclamação da República, dois lageanos haviam governado o Estado, Vidal Ramos (1910-1914) e Felipe Schmidt (1914-1918). É onde surge também a primeira oposição dentro do Partido Republicano Catarinense (PRC), sobretudo depois que Hercílio Luz suplantou em definitivo a liderança de Lauro Müller, oposição essa liderada por Vidal Ramos e seu filho Nereu Ramos – grupo que mais tarde vai apoiar a Revolução de 1930, constituindo as bases da futura Aliança Liberal.

As informações disponíveis indicam que, lá na ponta, José Fabrício se ligou a esse grupo, fazendo oposição ao superintendente (prefeito) indicado Otávio Manoel Bittencourt. Este, por sua vez, era apoiado pelo coronel Antônio Inácio de Araújo Pimpão (Duca Pimpão), ligado ao esquema político dominante em Palmas-PR antes do “Acordo”, por isso chamados por José Waldomiro Silva (1987, p. 44) de “palmerianos”, residentes no então distrito de Hercilópolis. Duca Pimpão planejava transferir a sede do município para Hercilópolis e para tanto “mandou medir uma grande área de uma de suas fazendas (Cruz Alta)”, com esse objetivo. Certa ocasião, seqüestrou os arquivos da superintendência (Catanduva) e os levou a Hercilópolis (SILVA, 1987, p. 48-49).

O grupo de oposição se articula em torno de Victor Rauen, integrado por Luiz Giorno (Limeira) e Henrique Rupp Júnior, incompatibilizados ambos com o governador Hercílio Luz, devido ao apoio à desastrada administração de Manoel Bittencourt. Certa ocasião, em 1921, os irmãos Victor e Eurico Rauen se deslocavam de Herval para a atual Luzerna, quando foram alvos de uma emboscada, com disparos de Winchester calibre 44. Os tiros passaram de raspão nas costas dos dois. Segundo Silva (1987, p. 38-9), os suspeitos foram presos, mas o superintendente Bittencourt, “homem violento e arbitrário”, tentou “soltar seus dois amigos” atacando o quartel da Polícia em Herval, onde estavam detidos. Frustrada a tentativa, Bittencourt tivera que fugir.


Referências

ADORNO, Sérgio. Monopólio Estatal da Violência na Sociedade Brasileira Contemporânea. In: Miceli, S. et al. (Org.). O que ler na ciência social brasileira 1970-2002. São Paulo: Sumaré, v. IV, p. 267-307, 2002. Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2007.

BELLANI, Eli Maria. Município de Chapecó: legislação e evidências. 1917-1931. Cadernos do Centro de Organização da Memórias Sócio-Cultural do Oeste de Santa Catarina (CEOM). Edição Especial. Série: Documento 1. Chapecó: Fundeste, Ano 4, p. 62-63, ago. 1989.

CORRÊA, Carlos Humberto. Um Estado entre duas Repúblicas: a revolução de trinta e a política em Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1984.

FERREIRA, Antenor Geraldo Zanetti. Concórdia: o rastro de sua história. Concórdia: Fundação Municipal de Cultura, 1992.

MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. 1972. 283p. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972.

QUEIROZ, Alexandre Muniz de. Álbum comemorativo do centenário do município de Joaçaba. Joaçaba: IP-Paraná, 1967.

SCHWARTZMAN, Simon. Da violência de nossos dias. Dados - Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. v. 23, n. 3, p. 365-70, 1980. Disponível em: http://www.schwartzman.org.br/simon/violencia.htm. Acesso em: 13 out. 2006.

SILVA, José Waldomiro. O Oeste Catarinens: memórias de um pioneiro. Florianópolis: Edição do Autor, 1987.




quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

A religiosidade de São João Maria (4)

Festa de Santo Antão (4ª parte)









Cenas da subida do Cerro de Santo Antão.

Público presente na última festividade (11.1.2009).


No rastro de São João Maria

Assim como cheguei ao tema Contestado sem querer, quando seguia os passos de um "coronel" muito mal falado de Concórdia-SC, também esbarrei involuntariamente na religiosidade de São João Maria. Ou seja, topei logo no início da pesquisa com as fontes de água do monge onde muitos casais até hoje levam os filhos para o primeiro batismo. Mais do que um elemento de forte presença entre os caboclos do Contestado no auge da repressão ao movimento (1912-1916), essa mesma religiosidade permanece nas regiões que percorri: o Meio-Oeste catarinense (Irani, Concórdia, Vargem Bonita, Catanduvas), Porto União-SC/União da Vitória-PR, e o Sudoeste do Paraná e imediações, como Coronel Domingos Soares, Palmas, Covó (Mangueirinha), Coronel Vivida e Pinhão.

Tinha contato com o tema (religiosidade) através de autores como Marli Auras, Nilson Thomé, Oswaldo Rodrigues Cabral, Pedro Felisbino, José Fraga Fachel, Paulo Pinheiro Machado, Ivone Gallo, Euclides Felipe, Duglas Teixeira Monteiro e Maurício Vinhas de Queiroz, entre outros. Mas foi diferente quando ouvi as canções de Vicente Telles e os depoimentos de dona Maria Antunes Lemos (Vargem Bonita-SC), Elvira Dalla Costa (Palmas-PR) e Sebastiana Perão (Coronel Vivida). Ou quando conheci o monge Marcos José Alves, operando no eixo Palmas-PR/Irani-SC, sobre quem falarei mais adiante. Nesse caso não vale tanto o que está escrito, mas aquilo que se vê e se ouve, o que nos faz sentir, emociona, aguça o tato e o olfato. Isso nos coloca diante do sentimento (ou da mentalidade) de quem viveu os tempos da repressão do movimento do Contestado.


O santo monge

Foi lendo que fiquei sabendo da presença de João Maria de Agostini no Campestre de Santa Maria da Boca do Monte (antiga denominação do atual município de Santa Maria-RS), lá por volta de 1848, pouco depois de haver se apresentado a uma repartição de imigrantes em São Paulo, onde ficaram os primeiros registros de sua presença no Brasil. Veio da Itália e nossa historiografia nada conta sobre seu passado, há uma formidável lacuna em relação a isso. O que "sabemos" é sobre sua presença nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, muito pouco em Santa Catarina. É possível que ele tenha morrido na Lapa-PR, mas ele não morreu segundo o sentimento colhido entre os caboclos da área geográfica pesquisada.

Deixo de apresentar aqui qualquer fotografia de João Maria de Agostini, por não serem dele as que circulam amplamente segundo Oswaldo Rodrigues Cabral. As estampas que ornam muitas residências e oratórios no Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e outros estados, são do "segundo" monge, João Maria de Jesus, sobre quem falaremos mais adiante. Como o "segundo" seguiu a tradição do "primeiro", inclusive na aparência física, supomos que tenham se parecido. Na historiografia corrente do Contestado existiram três monges: o primeiro (João Maria de Agostini), o segundo (João Maria de Jesus) e o o terceiro (José Maria de Castro Agostinho), mas na realidade dezenas desses monges percorreram a região e levaram a "mensagem" de São João Maria.


As águas de Santo Antão (*)

No verão de 1848/1849 entre oito e nove mil pessoas procuraram tratamento para algum tipo de mal nas águas da fonte de João Maria de Agostini no Cerro de Santo Antão. As informações são do médico Thomaz Antunes de Abreu em relatório de 25 de maio de 1849. Ele fora ao Campestre (Santa Maria-RS) por determinação do presidente (governador) da Província, Francisco Soares de Andréa, preocupado, como o alto clero, com as romarias e aglomerações de povo sob o comando de um monge. A lei 141 de 18 de julho de 1848 autoriza o envio de "um médico de confiança" ao local para verificar as qualidades das águas, apontadas como milagrosas e vendidas em algumas farmácias da área central de Santa Maria.

Depois de verificar as três fontes do cerro (da Cruz, do Umbú e da Misericórdia), o médico concluiu que as águas não tinham nenhum poder medicinal. Antes disso, João Maria de Agostini já tinha sido preso, levado a Porto Alegre-RS e a caminho da Ilha do Arvoredo, ao norte da Ilha de Santa Catarina (Florianópolis-SC), como veremos adiante. O doutor Thomaz de Abreu observou uma religiosidade "diferente" da que ele praticava, levando-o a falar em uma "nova Religião" ali se formando. Os elementos eram "as águas, o barro, as árvores e os cipós", considerados santos.

Aliás, o médico passou um apertado, como se diz. Ao tentar desqualificar as propriedades milagrosas das águas do cerro, houve uma "celeuma" "contra os médicos". Tentando acompanhar os tratamentos ali efetuados pelas pessoas humildes e simples, sentiu um "não acolhimento da parte de muitos". Usando de "minha natural prudência" ele teve que mudar de procedimento para obter as informções desejadas.

(*) FACHEL, José Fraga. Monge João Maria: recusa dos excluídos. Porto Alegre; Florianópolis: Editora da UFRGS; UFSC, 1995.


O fio da meada

Quando estive em Santa Maria nos dias 10 e 11 de janeiro (2009), acompanhando os momentos finais da 161ª Festa de Santo Antão - criada em 1848 por João Maria de Agostini - tinha em mente um pouco da descrição do evento feita pelo médico. E também o texto "Aos do Campestre", com as recomendações do monge para os festejos. Não encontrei as pessoas acampadas, referidas por cronistas e historiadores, mas sobravam produtos importados do Paraguai e uma profusão de ítens religiosos, churrasco e cerveja à vontade. A imagem de Santo Antão, a Capela e a Ermida no alto do cerro não são as originais. Nenhuma "imagem" de São João Maria.


A devoção às águas, ao barro, às árvores e cipós. Bebiam a água e cobriam ferimentos com o barro do cerro. Foi o que o doutor Thomaz viu no Campestre em 1848.

Campestre de Santo Antão, 11 de janeiro de 2009. Muitos romeiros sobem o cerro (morro) de pés descalços, por uma trilha de 300 metros de extensão pontuada por 14 cruzes. Coletam e bebem água nas fontes e se apoiam em improvisados cajados durante a subida e a descida. A água, os pés descalços no barro, os pedaços de árvores apoiando o deslocamento. Ao pé de cada cruz os devotos acendem velas, oram, descansam antes de seguir cerro acima. Os cajados são deixados no início da trilha pelos que retornam da jornada. Outros vão se apoiar neles para subir. Vão tomar água na fonte antes de seguir até a ermida no alto do cerro. E vão encher seus frascos com a mesma água e levar para casa.


E São João Maria? Quase não se fala dele, mas as pessoas sabem quem criou a Festa de Santo Antão - um monge que trouxe de longe a imagem do santo. O seminarista Everton Pairé fez referência ao "monge João Maria" e sua relação com o surgimento da festa de Santo Antão no tríduo do dia 10 de janeiro último (2009) na Capela de Santo Antão (Santa Maria-RS). De alguma forma a fé e a devoção expressas nessa festividade de cunho popular sobreviveu e se mantém, apesar de tudo, como veremos adiante, ao lado de vendedores de importados, óculos, bijuterias, chapéus e artesanatos e da concorrida roleta da sorte.


Presentes na última Festa de Santo Antão

D. Hélio Adelar Rubert, bispo de Santa Maria-RS.

Prefeito Cezar Schirmer (direita)
e o vice José Haidar Farret.


Pe. Ruben Natal Dotto.

Seminarista Everton Pairé.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

José Fabrício das Neves (40)

O caso do monge Nemésio

Capa do jornal O Estado, nº 629.
Florianópolis-SC, quarta-feira, 13.6.1917.

O colega do curso de História na Udesc, Felipe Corte Real de Camargo, me ajudou a pesquisar os principais jornais catarinenses entre 1917 e 1921 na Biblioteca Pública de Santa Catarina, em Florianópolis. Entre os eventos do período se destaca o surgimento de um novo monge, Nemésio José de Medeiros, abordado na postagem anterior. A seguir, um pouco do que foi publicado na época. (Clique nos recortes para ampliá-los).


Capa do jornal O Estado, nº 635.
Florianópolis-SC, quarta-feira, 20.6.1917.

"O monge Jesus de Nazareth. Mais um semeador... da revolta?", pergunta o jornal O Estado em sua edição nº 639, página 2 (Florianópolis-SC,domingo, 24.6.1017). E publica uma matéria procedente de Campos Novos, escrita no dia anterior, com o subtítulo "População receiosa". O surgimento do novo monge no Irani "preocupa a atenção do povo daqui", diz o jornal. "É ele um caboclo alto, de barbas brancas e longas, descendo-lhe até o peito, cabelos brancos e compridos, olhos muito vivos e observadores com um certo ar de tristeza e de meiguice. Tem a imponencia impressionante o o ar superior de um santo. É excessivamente calmo e fala devagar, pausadamente, como que bem meditando no que diz. Usa uma bombacha a gaúcho e calça chinelos".

Informa que há cerca de oito dias ele embarcara em Capinzal "com destino a Curitiba afim de conferenciar com o dr. Afonso Camargo, presidente [governador] daquele Estado e solicitar permissão para edificar uma igreja no Irani. Ao que se sabe foi-lhe concedida a entrevista", comenta o jornal. "Consta aqui que desembarca de regresso hoje não tendo o governo do Paraná tomado providência alguma, tendo até, pelo contrário, garantido o monge Jesus de Nazareth. A ser isso verdade é indubitável a formação de novo canudos, incomparavelmente mais resistente que o antigo".

É importante situar esse novo monge no contexto da época. A fase mais aguda de repressão do movimento do Contestado (1912-1916) havia acabado e em 20 de outubro de 1916 fora assinado o Acordo de Limites Paraná-Santa Catarina, no Rio de Janeiro. A iniciativa gerou um levante armado na região Sudoeste do Paraná, envolvendo o deputado Cleto da Silva e os coronéis Domingos Soares e Manuel Fabrício Vieira, entre outros. As manifestações contra o acordo começaram em 7 de novembro de 1916, culminando com a sublevação entre maio e agosto de 1917. O período de ascensão e morte do monge Nemésio (Jesus de Nazareno ou de Nazareth) vai de maio a junho do mesmo ano de 1917.

Talvez por isso o jornal O Estado na matéria citada acima, faça uma advertência: "O novo Jesus de Nazareth é bem possível seja criatura da oposição do Paraná contrária ao acordo". Poucos dias depois sua morte é anunciada. "O monge Jesus de Nazareth foi assassinado. Uma peregrinação que acaba mal". Diz a matéria: "Nemésio José de Medeiros, que um dia, por uma anunciação divina, segundo nos disse ainda há poucos dias, recebeu no corpo o espírito de Jesus Cristo e desde então passou a chamar-se Jesus Nazareno, não teve como o rabino da Galiléia a cruz para expirar, no alto de uma montanha, mas apenas sofreu a rudeza de uma bala ou de um punhal, caindo na silenciosa floresta da margem do Uruguai".

E prossegue: "Esse novo messias que nasceu lá para as bandas de Jaguarão, desde moço se deu a leitura da Bíblia e não só se preocupou com os estudos exegéticos do livro sagrado do cristianismo, mas procurou caracterizar-se de modo a parecer um daqueles apóstolos do Tibiriades ou o próprio Cristo, que expirou no Calvário para redimir a humanidade". Assim, Nemésio "em andrajos esquisitos andou pelos campos e florestas a pregar a regeneração, até que um dia, com 3 contos de réis no bolso, resolveu visitar a capital do Estado do Paraná e entrar para a história, com uma coleção de fotografias curiosas, com um dos tipos místicos que tem impressionado a humanidade toda".

Ainda segundo o mesmo jornal, Nemésio regressara a "seu reduto" com "dinheiro e com um lote de terras para construir uma igreja", satisfeito por haver conduzido em Curitiba "centenas de curiosos, que o queriam ouvir e ver a sua longa cabeleira e a sua barba enorme. A sua sorte porém era má; o seu destino não era o de salvar a humanidade, mas o de cair, talvez por um tiro projetado por um admirador dos seus três contos de réis. (D'O Diario da Tarde)".


Capa do jornal O Estado.
Florianópolis-SC, nº 654, 12.7.1917.

Anúncio publicado em jornais de Florianópolis-SC
no período pesquisado (1917-1921), possibilitando
uma leitura da visão urbana dos monges.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

A religiosidade de São João Maria (3)

Festa de Santo Antão (3ª parte)

A presença da família Borin

Luiz Borin (a esquerda, na primeira fileira).
Acervo: Família Borin/Santa Maria-RS.

Fausto Borin (segurando o chapéu), pai do atual presidente
da comissão organizadora da Festa de Santo Antão, Alfeu Borin.

Acervo: Família Borin/Santa Maria-RS.

Última foto de Fausto Borin (meados de 2008).
Acervo: Família Borin/Santa Maria-RS.

Dona Elizia Schvamborn Borin, viúva de Fausto Borin,
acompanha as atividades da última Festa de Santo Antão.

Alfeu Borin conversa com o bispo de Santa Maria-RS,
dom Hélio Rubert, durante a 161ª Festa de Santo Antão (11.1.2009).

O brazão dos Borin.
Acervo: Família Borin/Santa Maria-RS.



Breve histórico

Quando fazia fotos do preparo de doces e pães da 161ª Festa de Santo Antão, no município de Santa Maria-RS, perguntei a uma das senhoras se ela também era de origem italiana.

- Italiana... Somos todos da família Borin, respondeu.

Isso me chamou a atenção. Após conversar com Alfeu Borin, presidente da comissão que organizou a última Festa de Santo Antão, constatei a presença da família nos festejos desde o final do século 19. Um livro escrito por Elena Borin (Caxias do Sul, 26.11.1999) ajudou a reconstituir a trajetória da família.

Tudo começou com a chegada dos irmãos Matteo e Bortolo Borin, em 1882, fixando-se nas localidades de Santo Antão e Caturrita. no município de Santa Maria-RS. Vieram por conta própria de Camisano Vicentino, província de Vicenza, no norte da Itália. Dona Maria Miolo Borin, casada com Bortolo, costumava dizer que não eram imigrantes, pois haviam custeado as despesas de viagem e adquirido as terras com recursos próprios.

Bortolo e Maria tiveram 10 filhos, cinco homens e cinco mulheres, alguns nascidos na Itália, outros no Brasil. Entre os filhos destacamos Luiz Borin, pai de Fausto Borin. Os dois, avô e pai de Alfeu, aparecem em fotos à frente de duas procissões de Santo Antão. Fausto faleceu em setembro do ano passado e era casado com dona Elizia Schvamborn Borin, 81 anos - o casal teve 14 filhos.


Imagens da devoção
161ª Festa de Santo Antão










DICA DE LEITURA

Confira aqui a íntegra da dissertação.

domingo, 18 de janeiro de 2009

José Fabricio das Neves (39)

Detalhe de uma foto obtida em 20.8.1919 durante a instalação da sede do município de Cruzeiro (Joaçaba) em Catanduvas-SC (conforme depoimentos de Cecília Boroski, filha de José Fabrício, residente em Concórdia-SC, e de Maria Antunes Lemos, moradora de Vargem Bonita-SC). José Fabrício das Neves (primeiro plano) aparece ao lado de Agostinho Ferreira e Cesário de Mattos (terno e gravata), segundo José Ambrósio Gomes.


As orelhas do coronel (*)

Por volta de 1917, apareceu na região de Concórdia, um sujeito chamado Nemésio José de Medeiros, com a missão secreta de matar José Fabrício e levar suas orelhas para o então governador do Paraná Afonso Camargo. É o que escreve Antenor Geraldo Zanetti Ferreira. Gaúcho que havia participado da Revolução de 1893 sob o comando de Gumercindo Saraiva, Nemézio se tornou um “monge teleguiado” do Governo do Paraná e da Brazil Development and Colonization Company, essa última preocupada com a “liderança exercida por José Fabrício das Neves na região”. Representantes da Brazil Development e seu advogado, Afonso Camargo, também governador, teriam combinado com Nemézio o plano, logo posto em execução (FERREIRA, 1992, p. 61).

O “monge” se instalou em Taquaral, perto de Rancho Grande, na região de Concórdia, onde com rezas e conselhos envolveu certo número de caboclos. Em contato com o governador Afonso Camargo no dia 13 de junho de 1917, “manifestou seu desejo de comprar dois alqueires de terra para construir uma igreja”. Fabrício “não tardou a ser informado dos objetivos do “monge”, a quem teria conhecido nos tempos da Revolução de 1893, no Rio Grande do Sul, tendo sido anteriormente seu “amigo e compadre”. Ainda mais que ele se apresentava como o “José Maria” ressuscitado, segundo Ferreira (1992, p. 62), “alma de outro mundo”, visando certamente às ligações afetivas de Fabrício com o falecido monge do combate de Irani (José Maria).

No dia 29 de junho de 1917, o caudilho e seus homens encontraram Nemézio com alguns seguidores na beira de um arroio na fazenda Laranjeiras, em Dois Irmãos, atual município de Presidente Castelo Branco. Usando uma winchester, Fabrício teria acertado Nemésio, provocando a fuga dos que o acompanhavam. Em seguida, “mandou pegar o corpo, arrastar para o lajeado, limpar as tripas e salgar bem”, conta Ferreira (1992, p. 62). Algum tempo depois, em 18 de julho do mesmo ano, o cadáver chegou à estação de trem de Marcelino Ramos-RS, “com a orientação de Fabrício para que um agente do Exército transladasse o corpo do falso monge à Curitiba”, para ser entregue de “presente ao governador Afonso Camargo”, segundo o mesmo autor. O corpo foi enterrado em Marcelino Ramos-RS.

A historiadora Ivone Gallo usa o exemplo de Nemésio para argumentar sobre a existência de vários monges na região do Contestado, reproduzindo entrevistas que ele deu a jornais de Curitiba-PR, em que se apresenta como Jesus Nazareno. Tendo nascido em São João Batista do Herval-RS, residira em Pelotas-RS, dois anos em Irani-SC, e naquele momento havia se fixado em Taquaral, no mesmo estado, onde queria construir uma igreja, já tendo conseguido 2:643$620 réis. Precisava de mais dinheiro. “’Jesus de Nazareno’ é um belo tipo de taumaturgo”, escreve o jornal paulista A Capital. “A cabeça é judaica; lembra mesmo o Cristo”, possuindo cerca de 50 anos de idade, “cabelos bastos, encaracolados sobre os ombros, estão brancos, com tons levemente doirados. O tipo é magnífico. A alma pelo que se pode descobrir é silenciosa e boa” (GALLO, 1999, p. 92-93).

Sua morte ocorrida em Herval, segundo a mesma fonte, provocou a “imediata reação dos seguidores” e, segundo o mesmo A Capital, “a situação no Contestado não é nada tranqüilizadora. O desaparecimento do monge, pelo modo violento como seu deu, acirrou ainda mais os ânimos da gente fanática”, que aguardava a ressurreição de Nazareno, o que não ocorreu. Havia entre os seguidores do “monge” a “convicção plena” da existência de espíritos do mal impedindo que ele ressuscitasse e “estes são, para eles, a forma armada e os campônios da zona litigiada que não rezam pela cartilha do defunto chefe. Daí, estar iminente uma grande revolução” (GALLO, 1999, p. 93). “O temor da repetição dos episódios de Canudos, a partir do desaparecimento do monge Medeiros”, destaca Gallo (1999, p. 94) “perturbava o sono das elites do país, que acompanhavam atentamente os acontecimentos, tratados vastamente pela imprensa das principais capitais”. Entretanto, o “vínculo entre Canudos e Contestado já havia sido traçado desde a tragédia de Irani”, acrescenta a mesma autora.

Todos esses fatos permanecem reelaborados de alguma forma na memória de caboclos e outros moradores da região. José Ambrósio Gomes, por exemplo, relata que ao se ver diante de José Fabrício, o “monge” Nemézio teria lançado um desafio: que não poderia ser morto, só com bala de ouro, ao que o caudilho teria desembrulhado a embalagem de maço de cigarros e envolvido a bala “com o douradinho”, explica Gomes. “Aqui está a bala de ouro”, teria dito José Fabrício, atirando em seguida. Gomes conhece armas e sabe que isso é impossível, mesmo assim endossa a representação do episódio. Mais fantástica ainda é a narrativa de Paulo Antunes das Neves, neto de Fabrício, residente em Pinhão-PR, filho do segundo casamento de Afonso Antunes das Neves. Segundo ele, o “falso monge” Nemézio teria sido espancado e alvo de muitos disparos, mas não morria, quando resolveram abrir o corpo e retirar as entranhas, “mas o cara não morria e corria em volta da casa berrando que nem um louco”. Decidiram então colocar sal, vindo o sujeito a falecer.

O impacto do evento ficou marcado na memória coletiva da região, anotada por frei Tambosi (1941) em suas Crônicas. Um “ancião venerável, dado a falso misticismo”, chamado José Maria, “chefiava o grupo de fanáticos que punham em sobressalto a região do Irani-Jacutinga, pela sua fama de criminosos que cada vez mais se espalhava”. O Governo do Estado “teve que mandar forças contra esses bandos”, mas “o coronel Fabrício, sem ser fanático, ao que parece não prestou muito auxílio às tropas”. E afirma que, “atraiçoados por seus caboclos vaqueanos, muitos soldados perderam a vida, entre eles o coronel João Gualberto”. Entretanto “Fabrício foi a causa, ou até mesmo o mandatário da morte do profeta José Maria (sic), a quem acolheu favoravelmente e depois mandou matar, alegando que ele revolucionava os seus caboclos”.

(*) Texto publicado em O mato do tigre e o campo do gato - José Fabrício das Neves e o Combate do Irani. Florianópolis: Insular, 2007)


Referências

FERREIRA, Antenor Geraldo Zanetti. Concórdia: o rastro de sua história. Concórdia: Fundação Municipal de Cultura, 1992.

GALLO, Ivone Cecília D’Avila. O Contestado: o sonho do milênio igualitário. Campinas: Ed. Unicamp. 1999.

TAMBOSI, Valentin. Livro de Crônicas para a Capela de Nossa Senhora Aparecida de Engenho Velho. Paróquia N. S. do Rosário, Concórdia, Diocese de Lages. [1941]. 50f. [manuscrito]. (Fotocópia das primeiras páginas cedida por José Puntel. Concórdia, abril 2007).



A repercussão na imprensa de Florianópolis

O Dia (Florianópolis-SC). Capa, 14.7.1917.

O colega do curso de História na Udesc, Felipe Corte Real de Camargo, com as malas prontas para uma pós-graduação em Buenos Aires, me ajudou a pesquisar os principais jornais catarinenses entre 1917 e 1921 que integram a preciosa coleção da Biblioteca Pública de Santa Catarina, em Florianópolis. Entre os eventos do período está o surgimento desse novo monge, Nemésio José de Medeiros - também chamado de Jesus Nazareno, Jesus de Nazareth ou de José Maria. Veremos em detalhes essa cobertura da imprensa na próxima postagem.