sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

José Fabrício das Neves (48)

Familiares de Afonso Antunes das Neves (segundo a partir da direita),
filho de José Fabrício. Acervo: Assis Antunes das Neves (Pinhão-PR).

A diáspora dos Fabrícios

Ao ser confirmada a morte de José Fabrício, teve início a expulsão dos caboclos da região do atual município de Concórdia. “Desprotegidos”, assinala Ferreira (1992, p. 79), os antigos moradores “ficaram sujeitos aos novos métodos adotados, restando duas opções: deixar suas posses ou tornarem-se empregados dos imigrantes que começavam a chegar”. Eram “a cobiça e a espoliação que vinham junto com o progresso”.

A empresa colonizadora Mosele, através de “seus encarregados pela segurança”, assegurou os despejos com métodos “geralmente violentos”. Assim, “a ferro e fogo, o Alto Uruguai Catarinense ficou ‘limpo’ para os imigrantes”. Por volta de 1925, segundo a mesma fonte, existiam entre dois e três mil caboclos, “alguns armados, não aceitando a demarcação dos lotes”, e outros “protegidos pelo acordo de Fabrício, conquistando legalmente suas terras junto a Brazil Development and Colonization Company”. Os “mais valentes dentre os caboclos”, como Fernando Osório Marques da Silveira, Brasil Bueno e Joaquim Barroso, “passaram a exercer o papel de capangas da Companhia”. Segundo Kurudz, os caboclos que até antes da morte de Fabrício se mostravam “humanitários e até mesmo infantis”, depois disso mudaram de postura. “Se tornara mais complicado após a morte de Fabrício [a relação com os caboclos], mesmo com a oferta de preços especiais, requerendo, sendo o entendimento da Companhia, medidas drasticamente mais fortes”, ou seja, a expulsão (FERREIRA, 1992, p. 80).

Um grupo desses caboclos, liderado por Teodoro Tristão, José Paulino e Vergílio Castilho, resolveu se deslocar para as regiões de Irani-SC e Pato Branco-PR. “Era impossível resistir. O sofrimento e as mortes do Contestado ainda estavam presentes em suas memórias”, enfatiza Ferreira (1992, p. 82).

Tropa formada por militares, capangas da Companhia Mosele e cidadãos para ‘caçar’ jagunços, antigos combatentes do Contestado.
1- Na porta da janela está Dogello Goss, Almerinda Goss, Jairo Goss e Djalma Goss.
2- Na janela levantando a cortina deve ser a empregada.
3- Sentado na escada, com o chapéu na cabeça é o João Estivalet Pires, então professor, depois secretário da prefeitura (gestão Dogello Goss), depois deputado estadual, presidente da Assembléia e conselheiro do Tribunal de Contas.
4- Abaixo do Pires, com a capa redonda está o Domingos Machado de Lima. (ex-prefeito de Concórdia).
5- Em pé no meio, parece que é o velho Crippa;.
6- Na escada com o chapéu na mão está o Dr. Arno Heschel, juiz de direito, futuro desembargador e nome de rua em Florianópolis.

As informações encontram-se no verso da fotografia. Dogello Goss foi prefeito nomeado do município de Concórdia, para o período entre 30 de março de 1937 até 12 de dezembro de 1945. Domingos Machado de Lima foi vereador em Concórdia, pelo Partido Social Democrático - PSD entre 1951 e 1955, posteriormente, foi eleito vice-prefeito de Concórdia para o período entre 31 de janeiro 1951 até 31 de janeiro de 1956. Domingos Machado de Lima assumiu como prefeito eleito para o período de 31 de janeiro de 1961 até 31 de janeiro de 1966.

A foto e a legenda são cortesias de Carlos Comassetto para o Fragmentos do Tempo. Foto do arquivo particular Gil Goss (Concórdia S.C).


Rumo ao Paraná

Por outro lado, cerca de 30 famílias mais ligadas a José Fabrício, se juntaram à família do falecido em busca do exílio, formando a caravana da diáspora com muitos carroções abarrotados de pertences, homens montados ou a pé, todos no rumo da localidade de Patcho Velho, no atual município de Porto União-SC, na divisa com o Paraná, segundo relato de um neto de José Fabrício, Assis Antunes das Neves (filhos de Afonso).

A comitiva era liderada por Afonso Antunes das Neves, então com 17 a 18 anos de idade, mas homem formado, experimentado na companhia do pai desde cedo, quando ainda tinha por volta de 11 a 12 anos. Segundo relatos dos familiares, ele não gostava do que via e ouvia nas andanças com o pai, e por isso não guardou boas lembranças daquele tempo. Passou o resto de sua vida ocupado em cuidar da família, fazendo um esforço para esquecer o passado. “Meu pai era muito resguardado”, lembra Assis. Sua esposa, Marli Terezinha Antunes, 62 anos, filha do imigrante de origem ucraniana João Lichevicz, lembra que “ainda menino [Afonso] seguia o pai, via o pai correr risco de vida”. Talvez por isso continuasse o resto da vida “quieto, não era um homem alegre, bem sério”, diz dona Marli.

Afonso pode ter ficado um pouco desnorteado com a morte do pai, principalmente da forma como ela se deu. E por algum motivo, demorou para contar à mãe, Crespina Maria, o que havia ocorrido com Fabrício. “Foi o Thomaz que insistiu para que ele contasse”, destaca Assis. Não existem informações mais precisas sobre o tempo de permanência da família na região após a morte do caudilho, apenas que “o Marcelino Ruas mandou que meu pai sumisse e levasse a família junto”.

Antes de partir, Afonso e dona Crespina Maria reuniram cerca de 30 famílias de caboclos ameaçadas ou já expulsas de suas terras, aqueles que “ficaram sem o Fabrício”, observa Assis. Numa das carroças, Afonso empilhou diversas caixas de rifles e munição que pertenciam a José Fabrício. Elas poderiam ser úteis caso precisassem se defender, o que não foi necessário. Anos mais tarde, foram descartadas no rio da Barra, no município de Marquinho-PR. Afonso levou ainda um revólver que jamais usaria, mesmo no tempo em que todos andavam armados. “Deixaram o Irani sem nada. E eram gente muito rica. Vieram pobres”, acrescenta dona Marli, que conviveu e conversou muito com Afonso.

Dona Crespina, que se manteve todo o tempo ao lado do filho e demais parentes e não voltou a se casar, “via o sofrimento dele” desde os tempos em que acompanhava o pai. “Naquela época estava sempre de prontidão para sair ou se esconder”, segundo dona Marli. “Tinha muito medo”, diz, de origem incerta. E “respeitava bastante a Crespina”. Era comum que permanecesse “horas e horas olhando as coisas, sem falar nada”.

Segundo Assis, a jornada de seu pai e sua avó terminou na localidade de Patcho Velho, em Porto União-SC, onde Afonso se casou com Angelina Vera, com quem teve seis filhos: Antônio, Geraldo, Emílio, Assis, Hortência e Sebastião – os três últimos nascidos no município de Marquinho-PR. Depois que Angelina faleceu, na década de 1940, Afonso se casou com Jorgina Camargo (filha do tropeiro de José Fabrício, Ozires Marques), tendo dois filhos, Paulo Camargo Antunes das Neves, 60 anos, e Daniel.

Em Marquinho-PR, Afonso se dedicou à lavoura, plantando milho e feijão e criando porcos, informa seu filho Paulo. Gostava muito de churrasco, sobretudo de costela gorda, tomava chimarrão com freqüência, mas não usava a indumentária gaúcha. Devoto de São Jorge e extremamente religioso, batizou todos os filhos e respeitava a Quaresma, época em que não se ouvia música, e “quem tinha instrumento em casa, guardava”, assinala Assis. O jejum nessa época era sagrado. Lia sempre a Bíblia, mas só ia à missa uma vez por mês, pois a capela da região era distante. Ouvia a rádio Gaúcha quase todos os dias e não perdia o programa “Farroupilha”, tendo sido fã de Teixeirinha.

Apesar de estar sempre amuado, triste, Afonso era “caprichoso”, segundo o filho Assis. Ou seja, “depois que a minha mãe morreu, ele não deixou os filhos se espalharem. Ficaram todos trabalhando na roça, derrubando a mata com machado”, assinala. As irmãs e o irmão de Afonso que vieram da região de Irani após a morte de José Fabrício, também se instalaram pela região. Hortência se casou com Rogério Vera, irmão de Angelina, primeira esposa de Afonso, tendo morado muitos anos no município de Cruz Machado-PR. Elíbia foi morar em Guarani-Açu depois de se casar. Domingos, que teve 18 filhos de seu casamento com Mantina Camargo, do grupo que veio de Irani, morreu no início da década de 1990. “Era animado, contador de casos, tocador de gaita”, lembra Assis.

Na época em que Afonso apresentou um ferimento na perna e precisou de tratamento, o filho Assis já estava morando em Pinhão, casado com Marli desde o início da década de 1960. Ele foi levado para lá. Mais tarde chegou dona Crespina, voltando para o lado do filho e assim permanecendo até perder a visão, quando retornou para a casa de Hortência, em Cruz Machado. Ali permaneceu até morrer por volta de 1961, tendo sido enterrada no cemitério da localidade de Palmeirinha-PR. Ela também não gostava de “comentar o passado, era quieta, pelo sofrimento que passou. Ela e o Afonso tinham muito medo. Havia alguma coisa que se viesse a público, relacionada com a vida que José Fabrício tinha levado... do que aconteceu com ele”, observa dona Marli.

Afonso continuou em Pinhão, morando na localidade de Faxinal dos Ribeiros, cuja casa ainda está de pé, ocupada por seu filho Daniel. Segundo relato de Assis, “a morte do meu pai foi a coisa mais linda”. Ele jantou, sentou para escutar a rádio Gaúcha como sempre fazia e foi se deitar. Já estava dormindo quando o filho Daniel ouviu um gemido vindo do quarto, se levantou para ver o que estava acontecendo e encontrou o pai morto. Afonso está sepultado no cemitério de Faxinal dos Ribeiros, no meio de pinheiros e campos de lavoura.


Referência

FERREIRA, Antenor Geraldo Zanetti. Concórdia: o rastro de sua história. Concórdia: Fundação Municipal de Cultura, 1992.


Assis e dona Marli no interior da fábrica de erva-mate (Pinhão-PR).

Familiares de Assis Antunes das Neves em dia de casamento.

Jurema F. das N. Zunker, neta de José Fabrício, filha de
Hortência, e Reinaldo Antunes (bisneto), em Pinhão-PR.


Hortência Antunes das Neves, filha de José Fabrício, entre as
noras Larissa e Irene. Cruz Machado-PR, 1977.
Acervo: Jurema Fabrício das Neves Zunker (Guarapuava-PR).

Hortência Antunes das Neves com familiares.
Acervo: Jurema Fabrício das Neves Zunker (Guarapuava-PR).


Paulo Antunes das Neves, neto de José Fabrício e residente em
Pinhão-PR, mostra a chaleira usada pelo avô para tomar chimarrão.



terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O caudilho do Contestado
A reconstituição de um assassinato (*)

Por Dante Martorano

Ilustração: Clóvis Medeiros.

Como anda a pesquisa histórica em Santa Catarina? Como contar a violência dos primeiros tempos do Contestado? A narração de hoje, sóbria e verdadeira se assenta no testemunho oral de muitos que contemplaram as feições ou ouviram de seus pais o másculo e amedrontador retrato do caudilho José Fabrício das Neves, com torpeza assassinado à custa de um ardil traiçoeiro.

- Apeie-se Fabrício...

- Comandante Marcelino, com honra aqui estão os seus convidados. Início do quase discurso do caudilho. Ereto na postura de destemor, à altura dum acampamento de beligerantes, José Fabrício nos músculos ostentava o vigor do corpo, nos traços de leveza, no rosto existia coragem.

Dava-se assim, àquela manhã de 31 de março de 1925, o encontro de dois companheiros de armas. Marcelino Ruas e José Fabrício das Neves. Cada um comandante de seu próprio corpo de combatentes, que de volta, a cavalo, retornam de São Paulo. Não viajaram com o Batalhão Bormann, formando pelo Coronel Passos Maia, que embarcara no Erval. Todos, entretanto, haviam marchado contra a insurreição de 1924. Apoio catarinense a Bernardes. Mas logo derrotados os revoltosos, não foi dado vez aos nossos três contingentes de combater os paulistas.

Linda manhã a de 31 de março de 1925. A pouca distância do Banhado Grande, fileiras de barracas armadas pelos homens de Ruas brilhavam ao sol. Perto dali os jagunços haviam “picado” a facão o cadáver do Coronel João Gualberto e mutilado os corpos dos soldados paranaenses. Perto também da cova rasa em que a fé jagunça depositara na ressurreição do monge José Maria.

José Fabrício das Neves e todos os homens de seu estado maior deram cuidado especial na preparação à visita. No caudilhesco cavalheirismo a um convite corresponde o zelo e o esmero na aceitação. Roupas da gala sertaneja. Rusticidade na beleza selvagem dos cavalos fogosos. As melhores armas na cintura. Espadas brilhando na guerreira ostentação.

Mas se desmoronou toda esta sobranceria minutos após a chegada. A um gesto de Ruas, dezenas de homens armados caíram sobre os visitantes. Desprevenidos e embasbacados não puderam reagir. Desarmados, presos, amarrados a cordas e num instante amordaçados. Só a convulsão do ódio e da revolta lhes estremecia os corpos no desespero.

Vida de turbulência, valentia e dominação fora até aquele momento a de Fabrício. A gente esparsa nos campos do Irani impunha a inflexibilidade de comando. Muitos eram seus parentes. Outros prepostos. Todos vassalos.

Em todas as terras cortadas pelo rio Irani o domínio de Fabrício – atingia bravos maragatos ou a seus filhos. Vencidos federalistas do Rio Grande do Sul, no último decênio do século passado [XIX] fugitivos da repressão. Bastou-lhe a travessia do Uruguai para se a acoitar nos ínvios sertões do Contestado. A pregação do monge João Maria fora estímulo para a libertação da miséria, na Terra da Promissão que o místico adivinhara no Irani.

Naquele dia, carregando como fera, atarraxado quase no lombo da mula cargueira, José Fabrício das Neves tangido foi para fora do acampamento de Ruas. Imediatamente após serem presos, ele e seus homens foram escoltados por um destacamento cruzando os caminhos da Fazenda do Campo Comprido, de Pelegrino Silvestre. A poucos quilômetros estava o acampamento das forças comandas pelo próprio caudilho prisioneiro. Muita gente que tudo enfrentava! Sem medo de nada e de ninguém. Ávidos da sangria de seus inimigos. Mas o cortejo se desviou na ocultação do humilhado caudilho, como bicho amarrado.

José Fabrício das Neves arrastado em seus próprios caminhos. Mesmo onde força alguma antes ousara enfrentá-lo. Terras agrestes em que tiniu o ferro de sua espada. Ali no verde daqueles campos, do emaranhado dos fachinais, na fertilidade daquele solo, à vista dos vales das grotas dos sertões do Contestado. Pedaço de Brasil onde a lâmina das armas de José Fabrício das Neves atestava o destemor, a violência e arrogância de quem deixa atrás de si e de seus rastros, a legenda da bravura.

Quando todas aquelas imensidões eram contestadas, o Paraná não conseguiu dali desalojar os Fabrícios. Nem a troca proposta das terras que eles se apossaram, por outros legalizadas na margem direita do rio do Peixe. Resistiram ao banimento. Daqueles paranaenses acirrados na paixão da luta pelas terras do Contestado, mais tarde fizeram com que nunca mais pudessem os Fabrícios terem o perdão. Era a lembrança de seu apoio ou tolerância ao monge José Maria. O ressentimento contra a gente do Arraial do Irani – pela imprensa de Curitiba dada como formado por ‘invasores catarinenses’. Muitos dos homens do caudilho chegaram a brigar junto com os fanáticos.

Fabrício teria entendido àquela manhã tudo como vingança? Das famílias dos mortos paranaenses no entrechoque com os jagunços? Porque fora preso? Perguntas sem respostas para ele e não encontradas pela pesquisa. Boatos houveram e ainda persistem. Gente de Palmas teria posto a prêmio as orelhas do caudilho.

Apearam o amordaçado caudilho no lugar denominado Caçadorzinho. A uma légua mais ou menos do acampamento de Marcelino Ruas. Descidos – das mulas e amontoados em seguida todos os presos. Quem de longe ouviu tantos tiros imaginou o festivo fogo de saudação. Mas das carnes de Fabrício e de seus homens que receberam o chumbo, esvaiu-lhes o sangue.

O pior é que a ciência deste assassinato não se limitou àqueles sertões do antigo Contestado, Não ficou só materializado nas covas ali mesmo abertas e cobertas com pedras. Andou pelo Brasil inteiro a notícia. À Ilha, ao Palácio do Governo, chegaram telegramas candentes de recriminações e de revolta...

Até do marechal Rondon, veio via telégrafo, a repulsa à traição e ao assassinato de José Fabrício das Neves. Valente em Armas como o Exército Nacional, na sustentação da legalidade personificada no governo do Presidente da República – Arthur Bernardes.


(*) Artigo publicado no jornal O Estado (Florianópolis-SC, 24.7.1983), junto com a ilustração de Clóvis Medeiros. Acervo: Biblioteca Pública de Santa Catarina.