Cenas do desfile de 7 de Setembro de 2007 no Irani (SC), onde se destacaram as crianças vestidas como personagens da história local.
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Nota A partir de hoje deixo de postar aqui as imagens de Sambaqui (Florianópolis-SC), onde resido, ficando o espaço reservado apenas para as fotos obtidas nas andanças pelo Meio-Oeste catarinense e o Sudoeste do Paraná. Quem tiver interesse em conhecer esse lugar com cerca de três séculos de existência, pode acompanhar o blog http://sambaquinarede.blogspot.com/.
Antônio Martins Fabrício das Neves. Fazenda Bela Vista (Irani-SC). Foto: Margaret Grando (21.3.2007)
O blog e as fotos
As pesquisas sobre os antecedentes e personagens do combate do Irani deixaram como legado um corolário de perguntas, dúvidas e lacunas, mas que nos conduzem a novos caminhos. Essa é uma das razões desse blog: difundir a informação levantada, mesmo parcial e precária, como forma de incentivar novos trabalhos, alertar, chamar a atenção para aspectos até então pouco considerados, mas que diante de um novo quadro assumem diferentes significações. O blog permite esse diálogo, interrompe o monólogo.
As fotos, publicadas em volume significativo, muitas originais, estão divididas em três grupos: 1) reproduções em arquivos públicos e pessoais; 2) personagens entrevistados para o livro e o documentário em preparação, quase todos descendentes de combatentes do Contestado; 3) cenários e paisagens dos lugares percorridos. As fotos sem indicação de autoria são minhas, feitas com uma D-70, modelo simples da Nikon. Também fiz as reproduções, algumas tratadas por Ayrton Cruz para o livro “O mato do tigre e o campo do gato”.
Não vou entrar na discussão teórica sobre a imagem, porém estou entre os que enxergam a fotografia como fragmento do real (não como o real em si), mas uma visão (construção) do autor.
Uma visão de mundo
Abaixo, na íntegra, as Décimas de Antônio Martins Fabrício das Neves, escritas em meados da década de 1930, quando estava deixando a adolescência. Ele tomou como base os relatos de moradores mais velhos e parentes próximos. Para quem quiser se aprofundar na relação entre versos desse tipo e a importância da memória oral, pode consultar “Guerra do Contestado: mímesis e políticas da memória”, tese de doutorado de Susan Aparecida de Oliveira (UFSC, 2006). http://tede.ufsc.br/teses/PLIT0250.pdf
Décimas (*)
Antônio Martins Fabrício das Neves
Povoamento dos campos do Irani
"1: Falando em uma tragédia
quero contar em um segundo
que se deu cos moradores
que morava em Passo Fundo
quando o monge João Maria
caminhava pelo mundo
2: Na beira de uma estrada
o meu avô residia
na tarde de uma Sexta-feira
veja o que lhe acontecia
ele encontrou um velhinho
que ali ninguém conhecia
falando o velhinho disse
que era o monge João Maria
3: Falando, o monge indicava
A mais ou menos a 10 família
Que viessem embora
Para um lugar
que o monge conhecia
que era o sertão de Palmas
que nada lhe acontecia
4: Não ligaram ao que tinham
deixaram tudo de lado
muitos deles vieram a pé
carregando o revirado
a procura da floresta
que o monge tinha indicado
5: Vieram embora pro sertão
não foi atras de riqueza
vieram conhecer uma terra
toda cheia de beleza
ali criavam seus filhos
zelando da natureza
6: Nem um deles tinha estudo
mais tinham muita educação
usaram muito respeito,
muita consideração
assim fizeram sua vida
numa verdadeira união
7: Foi assim que eu fiquei
rico, cheio de tranqüilidade
essa riqueza que eu falo
é saúde e amizade
isto faz parte da vida
e traz muitas felicidades"
...
Combate do Irani
Esta é a recordação
do tempo da minha infância
pesquisei desde criança
gravando em minha memória
a realidade do passado
fui escrevendo rimando
a verdadeira história
João Gualberto já está vindo
Comandando um Batalhão
Trazendo em sua muamba
Metralhadora e canhão
Veio pra fazer banditismo
Com os caboclos do sertão
O monge mandou uma carta
escrita bem declarado
precisamos se falar
talvez teje mal informado
não precisamos brigar
por que não somos intrigado
Respeite meus sertanejos
que eu respeito teus soldados
não vamos fazer injusta
matar quem não é culpado
Coronel deu um sorriso
com olhar entusiasmado
eu não aceito esta carta
e muito menos o recado
porque já trouxe até as cordas
pra levar tudo amarrado
O monge ficou pensando
emocionado e indeciso
eu não queria brigar
mas brigo se for preciso
por que em Deus tenho confiança
palavra de corpo e alma
pra quem restar fica a herança
que há de servir de lembrança
Irani, sertão de Palmas
Foi assim que o Irani
serviu de cancha de guerra
viu seus filhinhos chorando
e as mulheres desesperadas
ver seus maridos em jornada
pra defender sua terra
O monge José Maria
com seu gesto de carinho
montou no seu cavalo
e disse ao Fabrício, baixinho
Eu vou na frente da tropa
Quero imitar uma choca
Quando está com seus pintinhos
Morrer na boca do bicho
Pra defender seus filhinhos
Fabrício vou te orientar
que vou morrer neste ato
mais tu não passe do meu sangue
volte de novo pro mato
no sertão tu será um tigre
e no campo vai ser um gato
Irani ficou em silêncio
o povo humilde rezando
as nossas mamães chorando
fazendo prece ao Senhor
de ver seus filhos lutando
manchado de sangue e suor
OH, nosso Pai Poderoso
olhaste para o Irani
ai pareceu milagre
da nossa Mãe Protetora
de vencer metralhadora
com facão de guamirim.
Que terrível madrugada
que terrível despedida
no espaço de uma hora
a causa foi decidida
hoje só nos resta o nome
de quem por nós deu sua vida
...
Rancho do Fabrício
1: Velho rancho de Taquara
na costa de um alagado
aonde nasce a saudade
quando recorda o passado
2: Velho rancho de taquara
tu não tá aqui pra bonito
recordação de um conflito
que deu no banhado grande
batalha do contestado
aonde foi derramado
miles de gotas de sangue.
3: Velho rancho de taquara
tu és medalha pra mim
foi de onde saiu marchando
um piquete desfilando
que terminaram peleando
nas coxilhas de Irani.
4: Velho rancho de taquara
eis o rancho do Fabrício
que aqui ainda resta um resquício
mais bem pouco que se escreve
trocar o nome está errado
mais o meu sempre assinado
como Fabrício das Neves.
....
Sertão de Palmas
1: Com licença meus amigos
vou contar onde fui criado
nasci em sertão de Palmas
um lugar muito falado
isto fica logo aí
num cantinho deste estado
2: Foi onde deu um combate
eu me gerei na fumaça
sô um xirú do trote duro
tenho um pouquinho de raça
num torneio de cultura
é difícil eu perde a taça
3: Oh, minha terra natal
tu não é mais como era
se acabou até meu ranchinho
na costa daquela serra
onde eu sentia o perfume
das flores da primavera
4:Querido sertão de Palmas
que hoje é Irani
que só me resta saudade
de quando eu te conheci
hoje não se vê mais nada
do que antigamente eu ví
era verde e amarelo
coberto de um céu anil
no oeste catarinense
era enfeito do Brasil
5: O velho sertão de Palmas
é a terra que eu nasci
é a minha terra natal
que eu amei desde guri
hoje só resta a saudade
de quando te conheci.
....
Canção do caboclo
1:Se me derem um espaço
a minha informa eu quero dar
eu hoje fui convidado
vir aqui para cantar
sou criado desta terra
para o senhor vou contar
as campinas Iranienses
é a minha terra natal
2: Na minha terra natal
me parece, estou falando
eu não sou profissional
canto só quando me mandam
com minha simplicidade
amigo, estou convidando
quem quiser nos visitar
nós recebemos cantando
3: Nós recebemos cantando
só com canções altaneiras
eu sou filho deste estado
desta terra brasileira
catarinense peitudo
que honra sua bandeira
é terra que já deu vida
pra muita raça estrangeira
4: Pra muita raça estrangeira
meu amigo, isto é verdade
mas somos todos irmãos
e usamos hospitalidade
pra cantar pra minha terra
meu peito sente vontade
pra vocês deixo um abraço
levo comigo a saudade
5: Levo comigo a saudade
deste macanudo povo
quem visitar nossa terra
se for velho fica novo
cantando pra minha gente
isto pra mim é um repouso
quem de mim sentir saudade
diga que eu volto de novo
6: se aqui eu voltar de novo
assim será meu desejo
onde sou bem recebido
pros mais velhos o meu abraço
e pras criancinhas um beijo
7: Pras criancinhas um beijo
meus amigos isto é verdade
sou filho de um sertanejo
nunca morei na cidade
sou um caboclo do sertão
e nunca me senti sozinho
vivendo com a natureza
no meio dos passarinhos
...
Exaltação da natureza
1: Alo, Alo Irani
hoje tu me vê cantando
eu canto pra espairecer
por que já nasci chorando
as belezas que tu tinha
teu filho está reclamando
2: Oh velho sertão de Palmas
Deferente hoje eu te vejo
Foi meu sertão favorito
Querência dos sertanejos
Foi tu que me viu nascer
Da mamãe ganhando beijo
3: A minha terra natal
quedele tuas belezas
os gananciosos chegaram
levaram tuas riquezas
tu não tem mais o que tinha
terminou até a natureza
4: Quedele o verde sertão
onde caía o sereno
aonde que eu morei
no tempo que era pequeno
hoje só vermelha a terra
ainda cheia de veneno
5: Quem conheceu minha terra
há trinta anos atrás
os campos cheios de gado
cerros cheios de pinhais
hoje quem te vê de novo
já não te conhece mais
6: Tudo isto aconteceu
só por causa do dinheiro
minha terra hoje pertence
só pros grandes fazendeiros
até os pobres passarinhos
os que não fugiram, morreram.
(*) As “Décimas” foram localizadas por Ivone Gallo e cedidas a Paulo Pinheiro Machado, que as publicou na tese de doutorado (Unicamp, 2001) sobre as lideranças do Contestado. Sua difusão aqui foi autorizada por ele, Machado. Os títulos são meus.
Bandeira do Contestado (lei nº 12.060 de 18.12.2001). Foto: Cibils
Maragatos de lenço branco
As regiões de Lages, Curitibanos, vale do rio do Peixe e o hoje chamado Oeste catarinense, serviram de refúgio aos combatentes maragatos (federalistas) da Revolução de 1893-1895. O professor Paulo Pinheiro Machado desenvolve uma linha de pesquisa nesse sentido. Fui descobrir isso depois de constatar a presença, no Irani, de antigos maragatos, como o próprio José Fabrício e o coronel Miguel Fragoso, personagem de quem falaremos na seqüência. Isso reforçado com as referências de Antônio Martins Fabrício das Neves de que os moradores vindos do Rio Grande do Sul para os campos de Palmas/Irani, atendiam um conselho do monge João Maria. Qual deles fica difícil dizer, mas vieram fugidos das perseguições. Tinham combatido ao lado dos federalistas derrotados.
O chamado Canudinho de Lages (1897), segundo Pinheiro Machado, foi um movimento que uniu a religiosidade de São João Maria com o federalismo remanescente. Uma evidência está na troca da cor dos lenços que usavam no pescoço: o vermelho tradicional dos maragatos pelo branco de São João Maria (mesmo que essa fosse a cor dos republicanos pica-paus, seus adversários). Cabe destacar que o monge José Maria de Castro Agostinho, chegou ao Irani pelas mãos de José Fabrício ou com o consentimento dele, também foi muito ligado a Miguel Fragoso, outro ex-maragato.
No vácuo do Estado
Muitos podem achar que estou querendo transformar José Fabrício da Neves de bandido em herói. Não é bem isso. Primeiro que nunca considerei José Fabrício um bandido. Segundo que não estamos em busca de heróis. Fabrício foi um produto de seu tempo, mais precisamente do espaço de tempo entre a República e a Revolução de 1930, quando prosperou o coronelismo (*). E que em resumo era o seguinte: na ausência das instituições do Estado, surgiam homens e grupos de homens que tomavam para si a administração das vilas e cidades, o que implicava, sobretudo, o monopólio do exercício da violência (principal característica do Estado, segundo autores como Sérgio Adorno e Simon Schwartzman).
Esse conceito até certo ponto complexo, a que me ative por algum tempo, estudando, foi resumido da seguinte forma pelo senhor Tranqüilo Petini, residente no Irani_SC: “Naquele tempo não tinha autoridade, então ele era o delegado e o juiz”. O senhor José Gomes segue na mesma linha. Diz que se houvesse um crime bárbaro, um latrocínio, por exemplo, e ficasse comprovada a culpa do sujeito, ele mandava matar. Esse jeito próprio de governar uma comunidade tinha respaldo oficial, nos diferentes escalões, envolvendo, a partir de 1918, no caso estudado, apoio eleitoral a dirigentes locais. Alguns aspectos desses envolvimentos vão ser detalhados adiante.
(*) Sobre fenômeno do coronelismo: José Murilo de Carvalho e Victor Nunes Leal. O contato com as obras desses autores antecedeu as pesquisas, quando tinha em mente o “coronel” José Fabrício que chancelou um acordo com a companhia colonizadora, dando origem ao nome do município de Concórdia-SC (anteriormente Queimados). Visava estudar o enfraquecimento do coronelismo em Santa Catarina através desse personagem.
Foi então que descobri o envolvimento de José Fabrício com o combate do Irani e sua parceria com o monge José Maria. Essa virada no rumo da pesquisa foi acompanhada de perto pelo professor Emerson César de Campos, meu orientador na Udesc, em Florianópolis-SC, com quem pude conversar a respeito. Ele assina a orelha do livro “O mato do tigre e o campo do gato”.
Fontes
Além das 30 entrevistas realizadas em cidades de Santa Catarina e do Paraná, e do Processo do Irani (1912, 518 páginas), estou me baseando também nos seguintes livros e autores:
O último jagunço, de Euclides Felippe (Curitibanos: Universidade do Contestado, 1995).
Voz de caboclo, de Pedro Aleixo Felisbino e Eliane Felisbino (Florianópolis: Ioesc, 2002).
Concórdia: o rastro de sua história, de Antenor Geraldo Zanetti Ferreira (Concórdia: Fundação Municipal de Cultura, 1992).
O Contestado: o sonho do milênio igualitário, de Ivone Gallo(Campinas: Ed. Unicamp, 1999).
Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado, de Maurício Vinhas de Queiroz (São Paulo: Ática, 1981).
O Oeste catarinense: memórias de um pioneiro, de José Waldomiro Silva (Florianópolis: Edição do Autor, 1987)
Lideranças do Contestado, de Paulo Pinheiro Machado (Campinas: Ed. da Unicamp, 2004).
Guerra do Contestado: a organização da irmandade cabocla, de Marli Auras (Florianópolis: Editora da UFSC, 1997, 3º ed.).
A Guerra Santa revisitada: novos estudos sobre o movimento do Contestado, organizado por Márcia Janete Espig e Paulo Pinheiro Machado (Florianópolis: Editora da UFSC, 2008).
Versos
Sexta-feira, dia 7, serão disponibilizadas as “Décimas” escritas por Antônio Martins Fabrício das Neves, versos que inspiram o título de “O mato do tigre e o campo do gato: José Fabrício das Neves e o combate do Irani” (Florianópolis: Insular, 2007). O material produzido pelo senhor Antônio foi cedido por Ivone Gallo a Paulo Pinheiro Machado, que o publicou na tese de doutorado (Unicamp-SP, 2001) e, a pedido, autorizou o uso aqui no blog. Machado também encaminhou uma entrevista que fez com o sr. Antônio (Irani, 11/02/98).
"Arsenal" usado por Vicente Telles (Irani-SC) nas performances pedagógicas com estudantes e demais visitantes.
Mapa da área conflagrada. Trabalho do artesão Meinhard Horn. Reprodução: Cibils
Próximo a Lages (BR-116), complexo com restaurante, venda de artesanato, parque infantil e área de lazer e descanso, onde se destaca a escultura de São João Maria.
Momentos da apresentação da peça “Contestado – Vida e realidade”, pelo grupo “Sangue Jagunço” (Fraiburgo-SC), com os quatro principais combates do Contestado: Irani, Taquaruçu, Caraguatá e Santa Maria. (Fraiburgo, 11 de outubro de 2007).
Nascido em Laguna-SC em 23.11.1955. Reside em Florianópolis desde 1959, mais ou menos. Criado na Trindade (Florianópolis). Morou em Joinville de 1980 a 1986. Jornalista e historiador. Fotografa.
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