quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

José Fabrício das Neves (43)

José Fabrício das Neves (FERREIRA, 1990).


Mudança para Itá

A tradição oral na região de Concórdia, Irani e região mostra um José Fabrício das Neves com “namoradas em cada lugar”, como afirma a diretora do Museu de Concórdia, Alvair Santos, dona Iti. Foi visto anteriormente, através de Waldomiro Silva, que um filho do caudilho, de nome Vicente, cuidava do armazém do pai em Itá, embora não exista nenhum com esse nome de seu casamento com dona Crespina Maria Antunes. Jurema Antunes das Neves Zunker, residente em Guarapuava-PR, neta de José Fabrício (filha de Hortência), cita uma antiga moradora de Itá, dona Erondina, como sendo filha do caudilho. “Ela morreu há uns 30 dias, aqui em Guarapuava, com mais de 90 anos de idade”, conta.

Os descendentes de José Fabrício que residem em Pinhão-PR, falam de outro filho ou neto desconhecido do caudilho, residente na cidade de Bituruna-PR. As mesmas fontes fazem vagas referências à presença de Fabrício das Neves em diversas cidades do Paraná, especialmente Guarapuava e Iratí. Nesta última ele teria sido recebido festivamente por moradores e autoridades. E também em Mallet, município em que Fabrício e seus homens teriam plantado roças de milho para, mais tarde, ter alimento para os cavalos, durante andanças pela região. É o que relata Assis Antunes da Neves, filho de Afonso e neto de José Fabrício.

Em Engenho Velho (Concórdia), José Fabrício se relacionava com Josefina Boroski, com quem teve três filhos, entre os quais dona Cecília Boroski (ou Borowski), antes referida, residente em Concórdia. Seu parentesco com o caudilho, foi indicado pelo jornalista Rubens Lunge, e o fotógrafo Júlio Gomes, filho de José Gomes. Ela passa as tardes na varanda de casa, conversando com o marido, José Talim, e recebendo visitas. O casal teve dois filhos: José Narciso Talim, 62 anos, que tem cinco filhas, todas casadas, e João Talim, 60 anos, residente em Novo Hamburgo-RS, com a esposa, dois filhos e três filhas. Dona Josefina e os filhos moravam perto do engenho de cana sob os cuidados de Chico Lino, “numa casinha”, ao lado do rio Fragoso, “onde encontrava com o Jacutinga”, recorda dona Cecília (foto a direita/Júlio Gomes). Segundo Jurema Antunes das Neves, (foto a esquerda), neta de Fabrício residente em Guapuava, sua avó Crespina Maria Antunes das Neves tinha detalhes do relacionamento do marido com Josefina e da existência dos três filhos. “Ela sabia”, diz.

Segundo José Antônio Puntel, que conheceu a família Boroski, o pai de Josefina teria trabalhado para José Fabrício. É possível que diante disso, dona Crespina tenha arrumado um jeito de fazer com que o marido e a família se mudassem para Itá, onde já se relacionava com os primeiros imigrantes chegados na cidade. Tenha sido esse o motivo, ou outro, o fato é que José Fabrício “abandonou Engenho Velho definitivamente em 1923”, escreve frei Tambosi. No dia 30 de novembro “saiu o bando de peões e no dia 1º de dezembro, ele mesmo, à frente de um piquete de cavalaria” (TAMBOSI, 1941).

O mesmo autor acredita que a transferência de José Fabrício para Itá tenha sido motivada pela Revolução de 1923 no Rio Grande do Sul, “da qual queria estar perto, sem contudo ser partidário”, observa. Na ocasião teria feito um “contrato” com os “revoltosos” para a exploração de cedro em mil colônias e “embalçá-las Uruguai abaixo para a Argentina. Derrotados os revolucionários, foi cassado o contrato”. O armazém em Itá se chamava “Casa Nova”, fornecendo produtos secos e molhados, conforme indica Assis Antunes das Neves.

A mudança não significou a paz e tranqüilidade que aparentemente José Fabrício buscava. E com as quais dona Crespina sonhava. Ao contrário. Exatamente por ampliar sua influência, estabelecendo acordos com as autoridades e empresários, como veremos adiante, atraiu mais inimigos ainda. Paulo Antunes das Neves ouviu seu pai Afonso, o filho mais velho de Fabrício, relatar mais de uma vez um cerco à casa em que moravam, em Itá. Um grupo de homens teria cercado a casa e abatido a vaca leiteira de dona Crespina, colocada na brasa para assar. “Meu avô não estava em casa. Queriam matá-lo”, assegura Paulo. Com a ausência do caudilho, foram embora, mas ficou o medo.

Barracão que teria servido como QG de José Fabrício
(acima, acervo do Museu de Concórdia). Abaixo a
localização atual, junto à praça Dogello Goss, no
Centro de Concórdia-SC (foto de março de 2007).

Canjica e carne de anta

Além de se articular com o superintendente Victor Rauen e outras autoridades regionais, José Fabrício das Neves, teria entrado em entendimento direto com o Governo de Santa Catarina, pouco depois do “Acordo” de 20 de outubro 1916. “Apenas terminada a luta dos fanáticos, Fabrício fez um contrato com o Governo do Estado, em detrimento da Cia Railway, a qual nada podia fazer”, uma vez que as concessões de terras que detinha eram do tempo em que o Paraná controlava a região. “Não reconheceu Santa Catarina os contratos territoriais da Railway, e as terras foram vendidas a outros pretendentes” (TAMBOSI, 1941).

Segundo Piazza (1998, p. 253), a lei nº 1181 de 4 de outubro de 1917, dava aos detentores de títulos expedidos pelo Paraná um prazo até 1º de janeiro de 1918 para registrá-los junto ao Governo catarinense. Ela só foi regulamentada pelo decreto nº 2, de 21 de novembro de 1918. O contrato do Governo do Estado com José Fabrício, mencionado por frei Tambosi, pode ter ocorrido nesse intervalo. De qualquer forma, as concessões da Railway passaram para sua subsidiária, a Brazil Development e Colonization Company, sendo confirmadas em 1922 com o compromisso de que fossem colonizadas. Caso isso não ocorresse, as terras voltariam às mãos do Estado em 15 anos, segundo o citado autor.

A empresa cumpriu a exigência e entregou amplas áreas de terras a diversas companhias de colonização, entre as quais a Mosele, Everle Ahrons & Cia, com sede em Marcelino Ramos-RS, cujo compromisso assinado em 22 de fevereiro de 1924, envolvendo 1.073.582.648 m2, abrangia todo o atual município de Concórdia. No dia 18 de maio do ano seguinte, poucos meses após a morte de José Fabrício, começou a efetiva colonização da região (PIAZZA, 1988, p. 261).

Antes dos trabalhos serem iniciados, entretanto, algumas providências eram necessárias, visando sobretudo a presença de José Fabrício e seus caboclos assentados há mais de uma década pela região. Para essa missão foi escalado Victor Kurudz, funcionário da Brazil Development, oriundo de Curitiba, desde 1920 atuando como agrimensor com base em Piratuba-SC. Antenor Geraldo Zanetti Ferreira foi conversar com Kurudz em 1992, em Curitiba, onde residia.

Ele conta que sua família veio da província de Bocovina, atual Romênia, durante a Primeira Guerra, indo se instalar na colônia Irani, se transferindo depois para a capital paranaense. Ao chegar em Piratuba, a serviço, Kurudz logo tratou de fazer amizade com os caboclos, se referindo a eles, décadas depois, como “muito humanitários”. Logo estava na casa de José Fabrício, comendo canjica e carne de anta preparada por dona Crespina Maria, referida por Kurudz apenas por Maria. “Eu era amigo dele e eu o compreendia”, salienta.

Kurudz destaca no coronel Fabrício a “capacidade, conhecimento, uma psicologia, sabia lidar com as pessoas”. O caudilho não trabalhava, ou seja, não pegava no cabo da enxada nem tangia gado, mas vivia “rodeado de capangas que trabalhavam para ele”. Certa vez Fabrício lhe teria dito: “Comecei a trabalhar na roça, mas eu não preciso trabalhar, não gosto de trabalhar”. Para Kurudz isso era “só psicologia”, pois “ele tinha uma capacidade invejável de saber, de adivinhar aquilo que queria”.

Apesar de comer canjica e anta preparada por dona Crespina, indicando amizade entre ele e a família de José Fabrício, Kurudz produz um certo suspense ou ar de mistério do encontro na antiga estação do Barro, hoje município de Gaurama, entre Marcelino Ramos e Erechim, no Rio Grande do Sul. Ao que parece, ocorreu um desencontro e uma segunda reunião teve que ser marcada (KURUDZ, 1990). No livro em que aborda o tema, Ferreira (1992, p. 53) usa informações que não constam do depoimento, certamente anotadas durante conversas informais.
O encontro acabou acontecendo perto da estação de Barro, na pensão Sponchiado, em meio a rumores de que Fabrício estaria vindo com seus homens para algum acerto de contas, mas “seu único objetivo era encontrar-se comigo”, diz Kurudz. Logo após o café da manhã, Kurudz mostrou a Fabrício um documento que o advogado da Brazil Railway, Ulisses Vieira, “mandou para assinar”.


O acordo

Segundo o documento, cujo original não foi localizado, a empresa “se propunha entregar seis alqueires, divididos em lotes a serem distribuídos aos companheiros de Fabrício das Neves”. Eles teriam que pagar 50 mil réis ao ano por cada lote, “sendo que para o próprio Fabrício caberiam 400 mil alqueires de terras excelentes e férteis num local chamado Laranjal”, entre as regiões de Cachimbo e Planalto, em Concórdia. Segundo Kurudz, Fabrício “aceitou assinar o documento no cartório”. “Lá nos encontramos, o delegado, o juiz, eu, Fabrício e seus capangas”, garante Kurudz. “Antes de assinar, sem explicar o motivo do questionamento, Fabrício quis saber o nome do diretor da Companhia”, sendo informado que era Gonçalves Júnior. “Fabrício assinou o documento”. (FERREIRA, 1992, p. 53) A fazenda Laranjeira é a mesma em que teria sido morto o monge Nemézio.

Frei Tambosi (1941) também comenta o acordo em suas Crônicas “Para proteger os seus direitos nas colônias a Cia Railway fez um acordo com o coronel Fabrício”, entregando a ele, em parcelas, 450 alqueires “que ele distribuiu a seus caboclos, mas nunca pagou”. Entretanto, José Fabrício não figura nas listas de devedores nos Relatórios produzidos entre 1909 e 1931 pela Brazil Railway, mantidos pelo Arquivo Público de Santa Catarina, consultados em 15 e 16 de abril de 2007, em Florianópolis.

Por outro lado, existe o depoimento de Antônio Martins Fabrício das Neves, negando que seu antepassado tenha feito qualquer acordo. “Nunca ouvi falar, não é do meu conhecimento, porque se tivesse alguma relação, alguma coisa, o meu pai, meus avós sabiam disso”, garante, e “eles nunca falaram sobre isso. Eu acho que isso aí nunca, nunca houve” (Entrevista ao Museu de Concórdia, 1990). Seja como for, Fabrício deixa Engenho Velho e segue para Itá no mesmo ano em que o acordo teria sido firmado.


Fotos da praça Dogello Goss (março de 2007).

A concórdia

O mesmo Victor Kurudz envolve José Fabrício na solução de um impasse surgido na demarcação da região, onde existiam “ranchos de tábuas lascadas, habitados por caboclos, entre os quais Eusébio e João Cerilo Nery, que possuía uma bodega”, a mesma visitada pelo superintendente de Catanduva na expedição a Ita, referida anteriormente. Consta que o caboclo Eusébio, cujo nome completo se desconhece, teria se oposto à demarcação, quando Fabrício foi chamado. O encontro teria se realizado na “casa de Eusébio, uma tapera nas imediações do riacho” – o rio Queimados. O caudilho, “devido à forte influência que exercia sobre os caboclos”, serviu como uma espécie de avalista da proposta feita por Kurudz, que se “comprometeu a legalizar em nome de Eusébio uma considerável área de terra”. O caboclo aceitou, levando Kurudz a cunhar o nome de Concórdia para o lugar, hoje município (FERREIRA, 1992, p. 66).

Até que o documento do citado acordo apareça, temos apenas a palavra de Victor Kurudz, narrando fatos ocorridos quase sete décadas atrás, diante de um Antônio Fabrício das Neves que nega ter existido qualquer entendimento nesse sentido. Seja como for, a versão é a que alimenta a memória do município de Concórdia, uma espécie de mito de origem, ensinada nas escolas dos municípios. “A causa predominante no povoamento da vila foi a fixação de residência do caudilho José Fabrício das Neves, que havia estabelecido no local o seu ‘quartel-genenal’”, diz um texto da secretaria de Educação local. A colaboração do caudilho é enfatizada da seguinte forma: “Na venda dos lotes rurais, José Fabrício das Neves apresentava ao diretor da Colônia, caboclos interessados na compra de terras”. Referências ao acordo estão presentes na Internet. Exemplo: “O nome Concórdia deve-se ao fato de um acordo de paz, estabelecido entre jagunços coordenados por José Fabrício das Neves e a Brazil Development Colonization Company” (RADARSUL, 2007).(*)

O site da rádio Aliança, de Concórdia diz que visando “colonizar as terras ao longo da ferrovia, em 1912 aqui chegaram os primeiros imigrantes”, trazidos pela Brasil Devolompment Colonization Company, fundando “uma pequena vila, no local onde já residia o caudilho José Fabrício das Neves, considerado o pioneiro da colonização” (RADIO ALIANÇA, 2007). A Prefeitura de Concórdia destaca na Internet que a colonização do município foi promovida pela a Brazil Railway Co. (através da empresa subsidiária Brazil Development and Colonization Company, com sede em Portland, nos Estados Unidos), autorizada a funcionar no Brasil, a partir de 13 de março de 1912. “Nesta mesma época chegam os primeiros imigrantes, e fundaram uma pequena vila, no local onde já residia o caudilho José Fabrício das Neves, considerado o pioneiro da colonização”. (**)


(*) O texto citado parece ter sido retirado do site (estava em . Acesso em: 21 jun. 2007), substituído por outro em inglês. Acesso em 28.1.2008.
(**) O endereço citado foi substituído e o texto pode ser encontrado em novo endereço.



Notas - 1) Os textos acima, com ligeiras alterações, foram publicados em O mato do tigre e o campo do gato: José Fabrício das Neves e o Combate do Irani. Florianópolis: Insular, 2007. 2) A foto que abre a postagem foi publicada por Antenor Geraldo Zanetti Ferreira em seu livro citado, atribuída a José Fabrício das Neves. O pesquisador Napoleão Dequech, que viveu boa parte de sua vida em Concórdia-SC, garantiu ao fotógrafo Júlio Gomes que a foto era do pai de José Fabrício das Neves (Antônio Fabrício das Neves), mas não foi possível trabalhar essa informação. O homem se parece com José Fabrício, mais jovem, e a casa ao fundo pode ser a indicada como sendo o seu QG.


Referências

FERREIRA, Antenor Geraldo Zanetti. Concórdia: o rastro de sua história. Concórdia: Fundação Municipal de Cultura, 1992.

KURUDZ, Victor. 93 anos. Depoimento, julho de 1990. Concórdia/SC. Entrevistador: Antenor Geraldo Zanetti Ferreira. Equipe Resgate/Museu Histórico de Concórdia. Acervo do Museu Histórico de Concórdia. Transcrição Elza Paula Schmidt. Fita nº 4.

PIAZZA, Walter F. A colonização de Santa Catarina. 2. ed. Florianópolis: Lunardelli, 1988.

TAMBOSI, Valentin. Livro de Crônicas para a Capela de Nossa Senhora Aparecida de Engenho Velho. Paróquia N. S. do Rosário, Concórdia, Diocese de Lages. [1941]. 50f. [manuscrito]. (Fotocópia das primeiras páginas cedida por José Puntel. Concórdia, abril 2007).


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