O entrevero do Irani - 2ª parte
Metralhadora levada para o Irani e que não funcionou.
Acervo: Museu da Polícia Militar do Paraná. Fotos: J. L. Cibils.
Acervo: Museu da Polícia Militar do Paraná. Fotos: J. L. Cibils.
Hiram Maxim, o inventor. Fonte: Wikipedia.
A versão de David Carneiro
No meio da madrugada do dia 23 de outubro de 1912, João Gualberto reuniu seus homens para o ataque, chamando a atenção de todos para "os perigos que iam correr" e "lembrou a todos os deveres em face da Pátria". Acrescentou que "todos ali representavam a ordem, o que se queria era impor a lei". Por volta das 3h30 a força iniciou a marcha. João Gualberto contava com 73 homens.
O autor fala em "traição" da parte do coronel Domingos Soares. "Traição deliberada ou traição inconsciente; de fato houve traição". E o comandante da força paranaense "foi vítima de uma armadilha terrível, e emprevisível de sua parte porque a boa fé jamais percebe má fé nos atos de outros, quando os sentimentos são dissimulados". Um exemplo é o "tropeiro Roque", do qual não obtivemos o sobrenome. Foi ele quem, na travessia de um curso d'água, à noite, acendeu uma vela para iluminar o caminho, assustando a mula sobre a qual estava a metralhadora. A arma caiu na água e mais tarde, na hora de ser usada, travou.
Diz o autor sobre o episódio que a marcha seguia lentamente e sem incidentes, até que "num córrego arenoso com um movimento brusco da mula, que se assustou com uma vela (acessa para a verificação do caminho), a metralhadora e a caixa de fitas da mesma, caem n'água". Gualberto se aproximou do cabo Paixão, responsável pela condução do animal e "disse-lhe asperamente: - 'Morto agora, você não me pagava o que fez'". Paixão respondeu: "A culpa foi do caboclo que assustou a mula, sr Coronel".
A marcha seguiu. O pirquete do tenente Busse foi na frente e "já se divisavam três casas que supuseram ser de caboclos". [As residências de Bento Quitério e seus familiares]. Carneiro também cita o fato de Soares e Octávio Marcondes, que haviam seguido com a tropa até certo ponto, terem desaparecido. "João Gualberto ainda não suspeitou da traição, mas certo de que haviam desaparecido por medo, esclamou: - 'Por certo fugiram!' Ia João Gualberto enganado, a caminho do desconhecido".
A certa altura ouviram um disparo. "Um caçador? Sinal de alarma?". O comandante deixou a metralhadora na retaguarda. A infantaria seguiu de longe o piquete do alferes Adolfito que, por sua vez, seguia o do tenente Busse. "Assim atingiram a clareira, rodeada de mato, com um raio de um quilometro". Próximo a porteira das casas, "a vanguarda foi recebida pelo fogo de uma guarda avançada dos fanáticos, composta talvez de 10 homens e vindo do outro lado do mato". A força respondeu ao fogo. O tenente Busse se aproximou das casas, "onde foram encontradas somente mulheres e crianças, segundo alguns depoentes, ou várias segundo outros". [Confira os depoimentos dos Quitério na postagem José Fabrício das Neves (18)].
João Gualberto interrogou pessoalmente os moradores (fez uma "meia devassa", segundo Carneiro) e ouviu como resposta que "os homens estavam todos no acampamento do Monge. Tudo o mais que disseram não foi aproveitável". O comandante, o tenente Busse e seus homens retornaram às posições de combate. A metralhadora foi instalada "junto a casa de um tal Bento, numa elevação do terreno". Os disparos seriam dirigidos "para o lugar por onde haviam saído em fuga os homens da guarda avançada".
Esta seria a ala direita do combate, "apoiada no banhado que ficava a direita, e transponível por uma pequena estiva conhecida somente pelos vaqueanos, moradores da região, e por onde chegariam de frente as forças do monge. A velocidade de tiro da arma automática devia equilibrar a capacidade de fogo da ala esquerda e mesmo sobrepujá-la de muito". O coronel do então Regimento de Segurança do Paraná mandou que o sargento Cantídio carregasse a metralhadora com uma fita de dois mil tiros. Em seguida determinou que "os capotes fossem colocados nos cargueiros, e montado no selim da metralhadora experimentou a arma com alguns disparos, tendo ela funcionado a contento. Segundo outros depoentes essa experiência teria sido feita pelo alferes Sarmento".
Uma esquadra sob o comando de Libindo guarnecia a metralhadora, no centro. A ala esquerda avançou para um fachinal sob o comando do capitão Miranda. A cavaleria recebeu ordens de avançar, tomando posição a direita de Miranda - sob o comando de Busse com apoio da esquadra de Sarmento.
"Na previsão de que os fanáticos fossem em grande número, João Gualberto concentrava a maior potencia de fogo na ala direita onde viria o grosso chocar-se. Eles veriam naturalmente o reduzido número de atacantes e tentariam envolver esse apoio, desbordando, afim de transporem o banhado. Nesse instante, o fogo da ala esquerda entraria com o seu coeficiente, visto que os que fizessem o desbordamento deviam passar por duas vezes na frente do capitão Miranda, colocado com sua força na extrema esquerda, e a derrota do monge estaria certa, mesmo que fossem os seus partidários em número de quinhentos ou mais".
O alferes Adolfito recebeu ordens de avançar pelo centro e abrir fogo. Uma linha de atiradores foi disposta no terreno. "Nesse instante surgem os fanáticos em massa, alguns a pé, muitos a cavalo, e há um violento tiroteio em que toda a força toma parte". Segundo "os mais calmos depoentes", cerca de 100 homens a pé "investiram pela estiva", outros 150 estavam a cavalo. "Parte dessa força fez o desbordamento passando por fora do banhado".
Foi também nesse momento que a metralhadora engasgou. João Gualberto tentou de várias formas fazê-la funcionar até desistir. "Tomou o fuzil do soldado Caldeira, que fugiu, e com essa arma fez fogo". Havia muita fumaça. A visibilidade era mínima. Os militares receberam ordens de calar as baionetas. O capitão Miranda ouviu um grito do comandante: "- Miranda una a direita, que sua força está perecendo!"
Quando o oficial tentou a manobra, "os fanáticos investiram pela estiva, e enquanto a cortina de fumaça impedia a visão dos soldados, os fanáticos avançaram firmes sobre a colina da casa do tal Bento, enquanto outros davam a volta passando duas vezes o fachinal onde estava Miranda, sem que da ala esquerda se ouvisse um tiro". A partir desse momento começou o entrevero. Os caboclos usavam "afiadíssimos facões, gritando uma série de tolices entre as quais era possível distinguir as palavras: 'Senha! Regimento!' (Regimento foram a senhadada aos soldados, na véspera, senha que imediatamente foi conhecida pelos fanáticos). 'Baianos! Caracoles!' e o estribilho 'Mata!'"
Durou cerca de meia hora. Num terreno que conheciam palmo a palmo, segundo David Carneiro, no meio de uma "formidável confusão" e muita fumaça, "os fanáticos atacaram rijamente a pequena força da polícia" - 21 homens de cavalaria, dois oficiais, 40 homens de infantaria e 8 da metralhadora. Os homens da cavalaria apearam e entraram na luta. O alferes Júlio Xavier "de revólver em punho, ordenava a abertura dos cunhetes de munição. A força que estava junto ao Cel. João Gualberto reclamava aos gritos: - 'Munição! Munição!'".
Com alguns pacotes da munição recebida, levando a pistola descarregada no cano da bota. o comandante gritava: "- Avança! Fogo! Fogo!." Já estava ferido. "Tinha sido atingido por uma bala no torax, lado direito".
"Aos poucos o centro foi sendo obrigado a recuar, porque a ala esquerda ficara inativa ou desaparecera da ação". Recuaram até a orla da floresta, onde os cavalos estavam amarrados. "Daí, sem munição, os que não morriam ou não caíam feridos dispersavam no 'salve-se quem puder'".
O alferes Sarmento, ficou "gravemente ferido por um profundo golpe de facão na vista esquerda e todo ensanguentado", enquanto o tenente Libindo se arrasta para o local onde estivera o capitão Miranda que "desaparecera com os seus, sem tomar parte no entrevero". O sargento Cantídio e outros jaziam no chão. O tenente Júlio Xavier, já montado, chamou o alferes Adolfito para juntos deixar a área do combate. O tenene Busse que estava no centro sustentando fogo, retrocedeu com seu piquete, para o local onde estava a munição.
A morte do coronel
O coronel João Gualberto está junto a uma cerca e se defende com a mão esquerda, segurando na outra um mosquetão Comblain. Ele se bate como pode, "com inigualável bravura, vendo aproximar-se o momento épico de morrer pelo Paraná". Está ferido no peito, enfraquecido pela perda de sangue. Ele desce "a crista, em direção a barroca" atrás da casa de Bento Quitério. Ele se defende mas acaba caindo. Está próximo a um pé de pessegueiro brabo, sentado e coberto de sangue. Ele apenas se defende. Os demais fugiram.
Ele tenta se defender dos golpes de facões usando os braços. O punho apresenta vários cortes. Agora ele está cercado por cerca de uma dúzia de caboclos. Eles discutem se lhe matam ou não. "Nessa ocasião, um assassino, José Fabrício das Neves, tomou a iniciativa: 'Saiam todos que eu cabo dele!'" O coronel já está indiferente do que se passa em volta, olha "sem ver" os cadáveres, mas certamente ouve os ruídos da luta. Ele murmura alguma coisa, uns dizem ter sido "- Minha filha!...". Duas lágrimas "silenciosas lhe rolavam pelas faces abatidas".
O fim chegara. "O assassino Fabrício das Neves, deu-lhe então um golpe de graça, profundo, no frontal, provocando o movimento instintivo do moribundo, de levantar os dois braços para ainda defender a cabeça encanecida e descoberta".
Segundo David Carneiro, nove homens morreram e doze ficaram feridos. Entre os mortos estava o sargento Virgílio que, ao divisar José Maria no meio do combate, o abatera. "Na ocasião em que os bandidos avançavam, [Virgílio] reconheceu no meio deles o monge, com chapéu de pelo de tigre enfeitado com uma cruz verde. Chamou a atenção do Cel. João Gualberto para a sua figura e eliminou-o com vários tiros de pistola".
José Maria estava no chão, morto, quando o sargento Virgílio tentou decepar sua orelha, sendo impedido por caboclos que "o cortaram em pedaços, a facão, fazendo o mesmo ao cavalo" que ele montava.
"Causas" do "desastre do Irani".
David Carneiro não considera a falta de chegada de reforço como motivo da derrota.
1) Deficiencia do armamento usado pela tropa: a) a metralhadora não funcionou; b) os sabres punhais das carabinas Comblain "caíram com os tiros dados, impedindo a defesa extrema a baioneta"; c) excesso de fumaça permitiu o avanço dos caboclos em terreno que conheciam e impediu os tiros certeiros da força.
2) "Deficiência (se outro nome não se deva dar a isso) com que agiu a ala esquerda". Se o pelotão tivesse agido, poderia ter suprido a ausência da metralhadora. "Houvesse a metralhadora funcionado, e o Irani seria um triste incidente na vida do Estado, incidente que ficaria marcado pelo sangue de numerosos fanáticos sacrificados a ambição de um desequilibrado". (p. 265-274)
Referência
CARNEIRO, David. Duas histórias em três vidas. Curitiba: Papelaria Universal, 1939.
Depoimento de Manoel Isack de Oliveira
Processo do Irani, folhas 65-67 (inquérito)
Palmas-PR, 3.11.1912. Manoel Isack (escrito Isaac por alguns autores) estava com 30 anos, casado, lavrador, natural de Santa Catarina e residente em Caçadorzinho, filho de Isack dos Santos Souza, sabia ler e escrever.
Soube em outubro [1912] do aparecimento de um monge no Faxinal dos Fabrícios, tendo ido ao local “verificar se de fato existia aquele homem”. Ao chegar, “viu um homem na janela da casa de Miguel Fabrício”, verificando ser o monge, que ali estava acampado. Havia homens armados de Winchesters. Soube que o monge tinha vindo de Campos Novos, acompanhado por 40 homens.
Isack retornou outras vezes. Numa “ocasião”, conversando com o monge, foi convidado a “acompanhar ele e brigar, não dizendo com quem”. Depois disso Isack foi embora, “visto ter verificado que o tal monge não era o afamado João Maria”. No dia 21 chegou a sua casa uma força do Regimento de Segurança (cavalaria e infantaria), sob o comando do coronel João Gualberto. O comandante contou a ele que “ia com aquela força efetuar a prisão do célebre monge José Maria”, convidando-o a atuar como vaqueano das tropas, o que foi aceito.
Às 3 horas na madruhada do dia 22, seguiram “para o Irani”. Isack foi na frente. Ao chegar no Banhado Grande, a força foi atacada “por indivíduos que faziam parte do grupo do monge”. Diante disso o coronel Gualberto, que estava à frente, “ordenou que a infantaria avançasse, mandando estender em linha de atiradores”, além de mandar montar a metralhadora. Testou, ela funcionou inicialmente, mas depois ficou “engasgada”. Após abandonar a arma o comandante foi “para a linha de tiro e mandou que fosse feito descargas cerradas em direção ao mato próximo de onde o respondente viu surgir grande quantidade de homens montados e outros a pé”. Viu “perfeitamente quando a cavalaria do monge avançou sobre as praças da linha de tiro” e, diante do perigo e temendo “ser reconhecido”, Isack foi para casa.
Com ele chegou um corneteiro da Polícia, com diversos ferimentos. No dia seguinte apareceu um cabo “com grande ferimento nos olhos”. Depois surgiu outra praça com ferimento num braço. Eles não sabiam quantos tinham morrido, nem o destino de João Gualberto. No dia 24 ou 25, o sub-comissário de Polícia de Rio do Peixe foi ao local do combate e “aí sepultou todos os cadáveres que ali se achavam”. Soube disso quando, ao se dirigir para sua casa, sendo obrigado a passar pelo local, aproveitou para “verificar se de fato o monge estaria morto", encontrando o dito sub-comissário “em companhia de alguns homens, dando sepultura aos cadáveres”.
Isack “verificou que o célebre monge estava morto dentro de uma [...]”. “...quase sobre o banhado estava o cadáver do coronel João Gualberto”, que foi levado para o cemitério próximo. Isack calcula que a força do monge era composta por “trezentos e tantos homens”. Estavam com fita branca no chapéu: Miguel Fabrício, Thomaz Fabrício, Manoel Barreto e "Maurílio de Tal (vulgo Pepino Branco)". E “por ouvir dizer de algumas pessoas sabe que José Fabrício e José Felisberto tomaram parte no combate ao lado do Monge”. Na manhã de 22, lhe disseram que “Miguel Fragoso tinha abandonado o Monge, antes do combate, indo com algumas famílias para o Jacutinga onde mora”.
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