Vicente Telles
21 de março de 2007. Irani-SC. Conheci Vicente Telles em sua residência. Tinha contato com o trabalho, acompanhava as façanhas pelos jornais.
– Pois não! Disse Telles, meio sonolento, ao nos receber numa tarde de uma quarta-feira.
Apresentamo-nos, Margaret Grando e eu. O encontro havia sido agendado por telefone.
– Ah! Pois não! Queiram entrar.
A sala da residência de alvenaria com três pisos se assemelha a uma galeria. Ali estão representações artísticas do Contestado e, sobretudo, do combate de 22 de outubro de 1912 no Irani. E também fotos, como as de José Alves Perão, e dona Júlia Olímpia, avós maternos de Vicente.O pai, Heleodoro Telles da Rocha, e a mãe, Isabel Olímpia da Silva, também então presentes em retratos na parede.
– E o José Fabrício?
Vicente nos olha, pensa um pouco.
– José Fabrício era um tema proibido na família.
E nos conta o pouco que tem na memória.
Depois nos leva ao Cemitério e Museu do Contestado, a poucos metros de sua casa, nas margens da BR-153. Um pouco mais adiante o local do combate e o túmulo do monge José Maria de Castro Agostinho. Antes da despedida, Telles nos presenteia com o disco “Epopéia do Contestado – História em Música”, gravado por ele e Vicente Telles Filho, o Vicentinho. Se fosse um disco antigo, a agulha da vitrola teria gasto as ranhuras do vinil, dada à quantidade de vezes que ouvi as nove músicas ali gravadas.
Na segunda vez que fui a residência de Vicente já era hóspede, iniciando então uma grande amizade e colaboração. Acabei me tornando amigo do Vicentinho e das irmãs do Vicente que moram no Rio – Dina e Guilhermina. Mais tarde fui levado até a localidade de Jacutinga (Coronel Vivida-PR), onde fui apresentado aos tios de Vicente, José da Silva Perão (Juca Perão), filho do combatente do Irani José Alves Perão (José Felisberto) e a dona Sebastiana, carinhosamente chamada Vó Bástia pelos filhos e netos.
Nascido no dia 5 de outubro de 1931, em Palmas-PR, no antigo distrito de Retiro (hoje município de Coronel Domingos Soares), Vicente foi residir no Irani-SC com três ou quatro anos de idade. Ali permaneceu até 1950, quando foi servir o Exército, seguindo a carreira militar até 1975. Durante todo esse tempo ficou distante do Irani, retornando em 1977 para cuidar de sua mãe, Isabel, que morreu em 1979 (o pai, Heleodoro, falecera antes).
“Uma mãe-de-santo da Bahia me disse uma vez que eu tinha uma missão a cumprir, ali mesmo em Salvador, em Dourador-MS ou no Irani. E eu achei que essa missão era cuidar de minha mãe no Irani, mas quando ela faleceu, eu já estava envolvido até o pescoço com o Contestado”, lembra Vicente. Ele soube de alguns detalhes do Contestado através de um engenheiro da empresa Teixeira Guedes, construtora da BR-153. “Um deles se chamava Jailson Cavalcanti, se não me falha a memória”, diz. “Eu já tinha ouvido falar do combate do Irani, mas como todo mundo por aqui, eu também achava que o Contestado se resumia a esse episódio”.
Túmulo do monge José Maria de Castro Agostinho no Irani-SC.
Área onde ocorreu o combate do Irani no início da manhã de 22 de outubro de 1912.
Foi assim que Vicente nos recebeu na tarde do dia 8 de setembro de 2007, em sua residência: o titular do blog, o repórter-fotográfico Marco Cezar e o repórter-cinematográfico e também fotógrafo Marco Nascimento.
Na Assembléia Legislativa (Florianópolis-SC), quando recebeu o título de Cidadão Honorário do Estado de Santa Catarina(18.10.2007).
Lutador Solitário
Enéas Athanázio (*)
Em ligeira viagem pelo Estado, chegamos à cidade de Irani, às margens da BR 153 - a Transbrasiliana. Nas cercanias ocorreu o combate que daria início real à Guerra do Contestado que se estenderia até 1916.Ali pereceram, no dia 22 de dezembro de 1912, o coronel João Gualberto, comandantes das forças legais e o monge José Maria, líder dos revoltosos. Fatos que calaram fundo na alma do povo e transformaram a cidade no local onde foi aceso o estopim da mais sangrenta conflagração civil de nossa história. O cemitério e o monumento do Contestado são atrações turísticas muito visitadas.
Percorrendo o centro urbano, limpo e bem cuidado, conversando com um e outro, logo veio à tona o nome do prof. Vicente Telles, segundo a vox populi a maior autoridade nos assuntos do Contestado. Já o conhecia de nome há muitos anos, tinha notícia de suas atividades e havia lido trabalhos de sua autoria. Reside numa fazenda, herdada dos antepassados, cerca de dois quilômetros além da cidade, e para lá nos dirigimos. Tem uma casa ampla e bonita, construída num pátio elevado e limpo, de onde avista o imenso vale verdejante que se estende a perder de vista, com os campos manchados de capões e onde farfalham muitos pinheiros e árvores nativas. Ali não se toca em nada, diria o dono, mais tarde. Como fosse um sábado, tivemos a sorte de encontrá-lo em casa e ele não tardou a aparecer.
Homem alto, com os cabelos pelos ombros, simpático e falante, logo entrosamos uma conversa algo desencontrada, como é comum nos primeiros encontros. Ele nos deixou à vontade e logo pudemos avaliar a amplitude de seus conhecimentos sobre o Contestado, seus feitos, causas e conseqüências. Modesto, ele se considera um rábula da história, embora eu prefira dizer que é doutor pela boca do povo, como se considera o poeta Ascenso Ferreira. Naquele dia, como em todos os sábados, ele faria um programa na rádio local, "A Voz do Contestado", para o qual me convidou e lá fomos nós, realizando uma entrevista improvisada na qual pude falar um pouco de minha obra.
Vicente Telles é um lutador solitário. Criou e dirige a "Fundação do Contestado", cuja sede está instalada numa espécie de museu que construiu por sua conta nas proximidades da casa. Bate-se pela implantação do Parque Temático cuja "maquete" nos exibiu, expondo em detalhes o projeto. Esbarra, como sempre acontece, nas teias da burocracia e nos enredos da política, retardando a consecução de uma obra que introduziria a região no mapa turístico e cultural do Estado de forma destacada. Luta também pela preservação da memória da Guerra, desfigurada em tantos pontos e, acima de tudo, pela afirmação da identidade catarinense e pelos valores espirituais que nortearam a ação dos revoltosos. Apóia e participa do grupo Folclores Itinerante do Contestado, apresentando peças, montagens e performances de grande porte, algumas em praça pública.
Musicista e poeta, é autor de vários trabalhos sobre o assunto, alguns dos quais nos ofertou. Sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, foi membro do Conselho Estadual de Cultura.
Como tantos que lutam pela cultura em nosso país, ele trabalha só, enfrentando todas as dificuldades. Mas tem a vontade férrea dos idealistas e nada o fará desistir. Está convencido de que, mais dia menos dia, suas realizações integrarão Irani e região entre os mais visitados itinerários de nosso Estado.
(*) Enéas Athanázio é escritor e promotor de Justiça aposentado. O artigo foi publicado no suplemento literário A Ilha, nº 97, junho de 2006. Acesso em http://br.geocities.com/prosapoesiaecia/Lutadorsolitario.htm. Sua republicação aqui foi autorizada pelo autor.
Excelente postagem. Mais catarinenses deveriam conhecer este índivicuo exemplar, espécime raro de luta e dedicação dentro da sociedade brasileira.
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