São João Maria em União da Vitória-PR. Foto: J. L. Cibils.
O reduto do Irani
Dona Maria Antunes Lemos reside em Vargem Bonita, entre Catanduvas e Irani. É filha de Gabriel Fabrício das Neves e Lúcia Maria Antunes, irmã de Crispina, esposa de José Fabrício. Descende dos Antunes de Passo Fundo-RS, todos maragatos. Conversei com ela em duas ocasiões e, numa delas, perguntei como era o reduto do Irani. Ela me disse que sua mãe esteve lá, viu algumas pessoas sentadas no chão em volta de fogueiras, outros tocando violão. “Ela não viu nada de mais”, assegurou.
O reduto do Irani se localizava na região do Banhado Grande, na época conhecido por Faxinal dos Fabrício, nas margens da BR-153. Era ali que moravam José, Thomaz e Miguel Fabrício das Neves, e outros da mesma família. Havia uma igreja e cemitério. Um cemitério ainda existe, possivelmente o mesmo (Cemitério do Contestado), mas da igreja não resta vestígio físico ou na memória dos moradores locais.
Nas imediações foi represado um lago e no meio dele erguido um grande palco inacabado, com arquibancadas nas laterais e uma maior no outro lado do espelho d’água. Integra o conjunto do Parque do Contestado que está abandonado. O local é cortado desde os anos 1970 pela BR-153. Foi em algum ponto dessa área que se formou o reduto do Irani, atacado por forças policiais militares do Paraná no início da manhã de 22 de outubro de 1912.
Combate à vista
Alguns depoimentos no Processo do Irani ilustram melhor o que foi o reduto. Para começar, muitas mulheres, esposas e filhas de moradores locais, ocuparam a cozinha da casa de Miguel Fabrício das Neves, encarregadas de preparar a alimentação de José Maria, seus Pares de França, e outros mais chegados, como o próprio José Fabrício. Quando o combate se aproximou, muitas mulheres, crianças e idosos se refugiaram na casa de Fidêncio Fabrício das Neves (avô de dona Aurora, residente em Coronel Domingos Soares-PR).
Outros depoimentos dão conta de que José Fabrício foi encarregado por José Maria de se deslocar até Engenho Velho para mobilizar o coronel da Guarda Nacional e ex-maragato, Miguel Fragoso. Outros chefes locais foram contatados por José Fabrício e José Alves Perão. Historiadores do Paraná dizem que Gabriel Fabrício das Neves, pai de dona Maria citada acima, fez o mesmo, apesar de ser na época inspetor de quarteirão, uma espécie de policial civil. Ou seja, havia um clima de preparação para o combate que se aproximava.
Pírulas da Vida
Polydoro Fabrício das Neves, filho de Maria Fabrício e Miguel do Espírito Santo, ouvido no inquérito no dia 19 de novembro de 1912, estava com 30 anos de idade, era casado, lavrador, gaúcho e analfabeto. Disse que no dia 14 de outubro daquele ano chegara de Palmas ao Irani quando soubera da presença do monge na residência de Thomaz Fabrício das Neves.
Precisando de remédios para pessoas de sua família, três ou quatro dias depois foi com Gabriel Cordeiro a casa de Thomaz, onde encontrou José Maria. Estava acompanhado de um grupo de 50 homens, muitos bem armados, inclusive “um piquete de cavalaria denominado ‘Doze Pares de França’ nos quais o monge depositava toda confiança, usando todos uma fita branca em volta do chapéu”.
Poly, como era chamado, se dirigiu a José Maria, “que era um bom curador, e pediu uma receita para sua mulher que estava doente”. O monge receitou “Pírulas da Vida”, medicamento que foi adquirido depois em Palmas, “as quais, tomadas por sua mulher produziram o efeito desejado”. Mais tarde, quando José Maria já estava na casa de Miguel Fabrício, Poly voltou a conversar com José Maria e estava a seu lado no entrevero.
Cozer uma bandeira
“Era o que minha mãe contava quando eu era menininha, todos se reunia lá, pois, os conselhos que ele dava as rezas que ele fazia e só pra vê, meu pai gostava e um dia 9...0 veio e falou eu vim te buscar pra ir lá é tão bom, ele reza, ele dá conseio, ele conta história, é muito bom (...) quando o pai saiu pra buscar minha mãe, já tinha os do Paraná pra que ele fosse embora pra convence, pra que ele voltasse onde ele veio e diz que ele refere-se ao monge daí falou bastante não chegaram a nada aí ele disse que pode ir vão sossegado, sossegado (...) Após os representante se retirarem o monge chegou na porta da varanda onde estava seu povo, muita gente a espera de uma resposta e diz eu preciso de uma senhora pra cozer uma bandeira (estandarte) e nove homem de coragem que enfrente. E nesse instante alguém perguntou o senhor não concordou que ia embora? Ele responde. Gente eu concordei e conheço maragato [sic] como a palma de minha mão, ele tão prometendo que ele entram aqui, eu me retirando eles entram aqui levam tudo que tem aqui sem vê mulher e criança e eles fazem isso se eu sair, todos morrem daí eles entram e fazem o que estão prometendo eu morro na boca do bicho mas eu não vou. Vou enfrentar ele, pois eles vem e eu vou esperar (...)”.
“...ele chegava nos piquetes, colocou um vidro no chão e disse ele estão vindo mas bem longe (...) ai depois disse estão bem perto. Eu vou e vocês ficam bem firme, saiu numa corrida (...) foi até uma porteira os Fabrício eram os que tavam lá cuidando (...)”. Trechos do depoimento da senhora Cecília Kades a Elenita Ribeiro. Irani (SC), 11.10.2004. In Irani pós-combate (1912-1926). Monografia de Elenita Ribeiro (Curso de História, UnC Concórdia, 2004, pgs 23-25)
Missa muito bem rezada
Maria Joana Perão acordou cedo no dia 20 de outubro de 1912, um domingo. Com cerca de 60 anos de idade, nascida no Rio Grande do Sul, ela escolheu o melhor que tinha no guarda-roupa. Acompanhada dos filhos José, Desidério e Elizeu Alves Perão, se deslocou até a igreja no Faxinal dos Fabrício, onde o monge José Maria rezou uma missa, “religiosamente ouvida por todos os moradores” locais. Terminada a celebração, os fiéis beijaram a mão do monge, inclusive dona Maria Joana e seus três filhos.
José Maria havia retornado ao Irani alguns dias antes, acompanhado por cerca de 40 homens armados, permanecendo inicialmente na casa de José Fabrício das Neves, no Pinhal (hoje em Vargem Bonita). No dia 14 foram para a residência de Thomaz Fabrício das Neves. Quatro dias depois se transferiu para a de um tio de Thomaz, Miguel Fabrício das Neves, nas proximidades. Alguns quartos da casa foram destinados a José Maria e Praxedes Gomes Damasceno, tratado por “comandante” ou “capitão”, enquanto os demais se alojaram em barracas no terreno em volta.
Feliciana Gonçalves dos Santos, 60 anos, esposa de Miguel Fabrício, viveu dias agitados desde a chegada daqueles homens. Certamente não teve que se preocupar com cobertas, pois em outubro a temperatura fica mais amena na região, mas fazer comida para tanta gente preocupava. Por sorte, algumas vizinhas se juntaram ao esforço culinário, como dona Maria Joana Perão. (Processo do Irani/Palmas-PR, fls 148-149)b
Ouvidos atentos desde a cozinha, onde ajudava no preparo dos alimentos, dona Maria Joana Perão acompanhou toda a movimentação que antecedeu o momento do combate, como a visita do coronel Domingos Soares no dia 21. Ao amanhecer do dia 22, soube que José Maria havia saído acompanhado por todo o seu pessoal na direção do Banhado Grande.
Pouco depois passou um moço ruivo e disse que as forças do monge estavam brigando com as do Governo. Em seguida apareceu José Fabrício das Neves, avisando que a polícia ia entrar e queimaria todas as barracas e a casa onde José Maria estivera acampado. (Processo do Irani/Palmas-PR, fls 148-149)
O que os animava
O “programa político” dos redutos, se assim podemos considerar, se fundamentava nos princípios da economia moral, ou seja, das relações que existiam com a terra e as florestas e outras riquezas, antes que passassem a ter valor de mercado. Mas é preferível que os próprios caboclos forneçam os elementos para a compreensão do que os animava. No caso do combate do Irani, temos o quadro de um agrupamento de “posseiros” frente aos interesses de coronéis (no livro eu discuto o conceito de coronelismo) e a chegada de uma força armada. Mas quem organiza a resistência é José Maria, ao lado dos chefes locais, entre eles José Fabrício das Neves.
Mandamentos do monge João Maria para uma boa vida no sertão1.
1) Nunca manche, meu amigo,
Cá mentira os lábios teus:
A mentira é farsidade
É contrária as Leis de Deus.
2) Quem odeia argúem no mundo
Ta ca alma enegrecida:
Todo ódio traz doença
E azar pra toda vida.
3) A inveja abate a gente
Invejoso é detestado
Quem cobiça o aiêio
A sofrê ta condenado.
4) Não se logra, nem se roba
São dois crime sem perdão
Os veiaco vão pro inferno
Pro diabo os ladrão.
5) Não se deve caluniá
A calúnia é pecado;
O aleive é um crime
Quem comete tá ralado.
6) O avarento é réu de curpa
Já tá preso e condenado;
Avareza é loucura
Custa muito sê curado.
7) Não se perca o respeito
Às famíia de quem tem
Quem não quer que mar lê faça
Nunca faça pra ninguém.
8) Nem sonhando tire a vida
Por mau impre a assassino;
Quem tirá o que não deu
Arrasô co seu destino.
9) Se argúem matá com raiva
Ave, bicho ou alimá
Faz um crime, é réu de culpa
Lá no Grande Tribuná.
10) Tenha sempre rua família
Como Santos do teu lar
Pro seu bem trabaie sempre
Que Deus há de te pagar.
11) Ninguém força tu te fio,
Mas se um dia fíios tive
Eles são o resurtado
Do que deles tu fizé.
12) Premiado ou reprovado
Pela sua inducação
O que deles tu fizé
Cedo ou tarde pagarão.
13) Se tu for um camarada
Zele tudo do patrão
Trabaiando com respeito
Cuide bem da obrigação.
14) Sendo dono ou encarregado
De fazenda ou de empreitada
Operário é como fíio
Cuida bem dos camarada!
Nossa que trabalho!!!!!
ResponderExcluirFico impressionada como uma fato histórico de tamanha importânci aé esquecido nos nossos livros de História.
Parabéns pelo teu trabalho
karina